segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O escritor

Já era tarde da noite. Sentou na frente do computador, bateu a cinza do cigarro no cinzeiro, prestes a transbordar - reflexo de uma mente inquieta e carente de nicotina e um corpo apático e desanimado. Era a terceira vez que tentava escrever naquele dia. Como todas as outras vezes, ficou olhando o cursor piscar por um longo tempo. Procurava, no fundo da mente, a maneira de iniciar aquele texto e só encontrava um grande vazio. 

Ele estava de pé, em um grande e vasto campo, olhando o nada. Não ventava. Não fazia calor. Não havia mosquitos nem animais. Gritou e percebeu que também não tinha barulho. Estava tudo em uma mudez incólume. Era apenas um grande gramado que se unia ao horizonte em todas as direções. O céu estava azul, sem uma única nuvem. Mas não havia sol. Era apenas um tapete azul claro, que se unia ao verde do gramado em algum lugar lá longe.

Bateu o cigarro no cinzeiro de novo. O cursor do editor de textos continuava na mesma posição. Puxou um trago profundo e soltou a fumaça devagar, para cima, olhando o contorno e as formas que a fumaça ganhava ao alcançar o teto do quarto. A previsão do tempo do rádio que estava ligado na cozinha anunciava uma semana chuvosa e a aproximação de uma frente fria que vinha do sul. Esfregou os pés nus no carpete e bateu o cigarro mais uma vez no cinzeiro. O cursor continuava piscando no mesmo lugar.

De repente um vento frio bateu em suas costas. Virou-se, para ver de onde vinha a corrente, mas continuou sentindo a brisa fria subir pela espinha. Olhou para as nuvens no céu e percebeu que elas iam ganhando um tom mais escuro. Procurou alguma referência naquele vasto campo e não achou nada. Era só um piso verde, que se encontrava, lá longe, com um céu cinzento. Andou de um lado para o outro, olhou para baixo e percebeu que a grama não era de verdade. Era apenas um relvado sintético e perfeitamente sobreposto, folha a folha. Sentiu um ardor na mão esquerda e a balançou, como quem acaba de se queimar.

O cigarro tinha chegado no fim e a brasa da ponta estava em contato com seus dedos. Balançou a mão abruptamente e derrubou o cinzeiro cheio no chão, formando uma nuvem de cinzas que se assentou calmamente no carpete. Xingou, maldisse a vida e foi lavar a mão para aliviar a dor da queimadura. Voltou com a mão ainda molhada e a chacoalhou antes de posicionar os dedos sobre o teclado do computador. Algumas gotas se espalharam pelo monitor e uma delas caiu exatamente sobre o cursor que piscava no fundo branco. Fechou os olho, respirou fundo.

A dor tinha passado e, quando estendeu a mão para ver se estava queimada, sentiu alguns pingos cairem do céu. A chuva caia preguiçosa e esparsa, mal conseguindo molhar sua roupa. Quando alguns dos pingos caiam sobre o chão cinzento, levantava uma pequena nuvem de poeira, que se assentava calmamente. Olhou para o céu azul claro e procurou o ponto de junção com o campo cinza. Firmou a vista, cerrou os olhos e percebeu que uma fina linha separava os dois. Ela piscava em um ritmo entediante.

As tropas americanas tinham invadido algum país do oriente médio. O noticiário do rádio dava conta de milhares de mortes causadas pela explosão de um caminhão bomba na embaixada americana, que ficava ao lado de uma escola. A embaixada veio abaixo e todas as crianças morreram. O analista de conflitos assimétricos modernos dizia que os terroristas estavam cada vez mais sofisticados e bem armados. "Se não fosse pelo petróleo e esse imperialismo idiota, essas crianças não morreriam", pensou. Lembrou da história de dois irmãos que vira no jornal na semana passada. Eles estavam cavando a sepultura do pai recém assassinado pelas tropas invasoras e acabaram salvos de uma explosão porque, pequenos, de 12 e 14 anos, estavam totalmente dentro da cova no momento da explosão. Tinha decidido que ia escrever sobre esse evento curioso, dar um ar noir para a história e colocar toda a culpa no governo. Recolheu o cinzeiro do chão e acendeu outro cigarro. O cursor continuava piscando.

Procurou sinais da chuva nas nuvens, mas os pingos já tinham parado de cair. O vento também tinha parado. Ouviu um grande explosão e choro de crianças. Virou-se para ver o que estava acontecendo e viu um prédio demolido, com um filete de fumaça preta saindo do que deveria ser uma janela. De dentro dos escombros jorrava um líquido preto. Aquele esguicho alcançava, facilmente, uns 10 metros. Sentiu a barriga molhada, pensou na chuva de novo, mas a regata branca agora estava manchada de sangue. Mais à frente, ao lado do prédio demolido, havia um buraco retangular e uma pá. Inclinou o corpo para ver o que tinha dentro. Era ele, com 14 anos, deitado de bruços folheando uma revista ilustrada sobre as Grandes Guerras. Estava se divertindo muito com as imagens da revista. Um bombardeiro passou rasante pelo céu cheio de nuvens e soltou alguma coisa, que caía com um páraquedas. 

Levantou-se. Tomou um copo d'água e foi deitar. Não tinha o que escrever naquela noite. Desligou o computador e adormeceu ao som da estática do rádio que permanecia ligado na cozinha.

Nenhum comentário: