quarta-feira, 5 de outubro de 2011

De frente pro crime

Era madrugada de domingo. Rolei na cama, fugindo das partes empapadas de suor do lençol para tentar dormir mais um pouco, mas o calor e uma mosca que insistia em sobrevoar meus ouvidos não deixaram. Levantei, descolei meu terço do peito molhado e fui até a janela de madeira. Com certa dificuldade, abri a portinhola e o ranger das dobradiças enferrujadas prenunciou o que seria o dia. 

Na rua de paralelepípedo, de frente para o bar que fica do outro lado, estava um corpo esfaqueado. O sangue, seco, dançou entre os blocos de pedra, fazendo um labirinto vermelho na ladeira. A pele negra do defunto ganhou um tom amarelo e alguma alma bondosa cobriu a cabeça com o caderno de esportes do jornal, com a foto de um golaço marcado pelo craque da camisa 10 de um time qualquer. 

Um pequeno amontoado de gente já tinha se aproximado para curiar o cadáver. Senti naquela gente a curiosidade mórbida comum dos crimes que acontecem nessa periferia. Pouco depois, o bar já estava lotado de todo tipo de sujeito. Josés junto com traficantes. Marias junto com prostitutas. Todos curiosos para saber de quem era o presunto. No meio do murmurinho uma voz se sobressaiu, seguida de um silêncio constrangedor:

- Bem feito! Esfaqueado na rua a essa hora da manhã? Boa coisa não devia ser. Que todos esses vagabundos morram dessa maneira!

Bonifácio, que voltava da gráfica com uma tonelada de santinhos para sua campanha de vereador, subiu numa cadeira de metal na porta do bar e aproveitou o momento com eloquência:
- É isso que vocês querem pros seus filhos? É assim que vocês querem acordar numa noite qualquer, preocupados com a volta das suas crias? Alguém precisa fazer alguma coisa! Vocês precisam de um representante na câmara para lutar por mais segurança, por mais condições de vida! João, distribua alguns aí pro pessoal! Vou deixar duas caixas de cerveja pagas aqui. Não se esqueçam: na próxima eleição, votem Bonifácio!

Aquele discurso cheio de gestos inflamou a claque que ouvia com atenção. Um tanto de gente se amontoou no balcão para lutar por um copo da cerveja recém anunciada e outro tanto discutiu as palavras que tinham acabado de sair da boca do político, enquanto agitavam os santinhos contra o corpo para fazer vento. O calor abafado já tinha espalhado no ar um odor de mortandade. O sangue cheirava a açougue, com a diferença de que era mais ácido e mais forte.

Cocei a barriga e percebi um homem se aproximando com uma bancada montada, cheio de correntes, pulseiras, aneis e vidros de perfume. Ele andava por entre a multidão anunciando os produtos. Parava nas mulheres, tirava alguns exemplares das bijuterias baratas e as experimentava nos pescoços suados que, a essa altura, já tinham esquecido do morto e agora pechinchavam com o ambulante.

Um pouco pra direita, a baiana que costuma vender acarajé na porta da igreja da matriz já tinha montado a barraca e ateava fogo no carvão para fazer espetinhos. A cerveja já tinha acabado, algumas confusões já tinham se armado e acalmado e o número de pessoas aumentava com o passar do tempo. 

Ja era alta madrugada e, de súbito, ouvi os batuques do pessoal que subia o morro, voltando de um ensaio na escola de samba. A baiana teve que largar os espetinhos queimando para acudir a porta-bandeiras que caíra numa convulsão estranha. Vai ver era o calor. Vai ver tinha baixado um santo. Não sei. As crianças corriam e gritavam em volta do defunto que permanecia ali, estatelado com o jornal na cara. A polícia ou o IML não tinham dado nem sinal de vida.

Quando alguém da igreja evangélica começou a pregar a palavra de Deus com ardor e um bíblia levantada, o pessoal foi se dispersando, devagar. Domingo ia ter jogo do Flamengo e, agora, um monte de negras cheirosas passeavam pelas calçadas. Observei a movimentação mais um tempo. O bar fechou, a rua esvaziou e o corpo jazia ali, inerte, esperando alguma ação enquanto seu fedor tomava conta do ambiente.

Alguns rapazes largaram os tambores de lado para levar a passista no colo, enquanto outros ajudavam a baiana a desmontar a barraca. Fiz o sinal da cruz, por precaução, e fechei a janela. Era só mais um domingo começando.



sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Getting back to go forward

"Para continuar caminhando em frente, às vezes é preciso recuar alguns passos."

Nunca consegui aceitar muito bem esse dito popular. Na minha cabeça, o progresso é one way only e, poxa, ter que recuar quando o que se mais quer na vida é chegar a algum ponto nos deixa, no mínimo, frustrados. Ora, como é que eu vou chegar no ponto de ônibus a tempo de embarcar se antes vou ter que fazer um moonwalk, dar uma rodadinha, e depois continuar? Não faz sentido, né? Mas faz.

Me peguei pensando no processo de desenvolvimento de uma borboleta. Sem a licença poética da coisa. Veja: ela nasce livre. Uma larva que pode saracutear pelas folhas e se empamturrar com o que quiser. Sobe, desce, conversa com as irmãs e reza para um pássaro ou outro predador qualquer não escolhê-la pro jantar. A folha é a zona de conforto da nossa amiguinha. Ali ela tem tudo o que precisa para viver: comida e uma relativa proteção. É o cenário perfeito, não é?

Ok, agora tira o zoom. Existe um mundo inteirinho que rodeia essa folha segura e tentadoramente confortável. Árvores, bancos, chão. Uma imensidão! Uma vastidão desconhecida. Um sem fim de caminhos a seguir, a explorar, a descobrir. Mas, infelizmente, nossa querida larva não pode usufruir desse mundo. Afinal, sua locomoção é péssima, os perigos são enormes e os caminhos muito, muito compridos.

Até aí, tudo bem. A vida de todo e qualquer ser vivo tem suas limitações. Pode ser que esse mundão todo realmente não seja feita para a larvinha. Daí que, de repente, ela vê uma linda borboleta azul, brilhante e imponente, rasgar um casulo e voar por toda essa imensidão. 

Opa! Peraí! Como ela conseguiu?

Subitamente, a larva percebe que aquela imensidão toda não é, necessariamente, uma coisa impossível de se alcançar. Com as ações certas e as ferramentas adequadas, ela pode, sim, ganhar tudo aquilo que está em volta da sua leaf-town. E aí a coisa fica complicada. A larva gosta de ser livre. A larva gosta de andar pelas folhas com suas irmãs e comer muito, até rolar. A larva gosta daquela emoção de não saber quando vai ser seu dia de azar, quando pode virar comida de pássaro. Mas, para ganhar suas asas coloridas e 'voar pelos caminhos mais bonitos', ela vai precisar abdicar disso. É um sacrifício necessário para a liberdade. Liberdade? Se isso é a liberdade o que a larva vive nesse momento. Ué. Não é, também, a liberdade? Não. Não mais. Saber que existe o desconhecido e que ele é perfeitamente alcançável tirou o status de liberdade da vida da larvinha. A folha, antes confortável e plena dos recursos necessários para uma vida feliz, tornou-se agente limitador, um pedaço de chão verde e pronto. E as irmãs nem são tão legais assim. Elas já não são interessantes o suficiente para justificar a estadia dela. 

Então a larva decide retroceder. Decide se aprisionar. Abdicar de tudo o que sua vida de gordinha fanfarrona gozou até agora. E isso é um retrocesso porque, sabemos, ela já esteve presa em um ovinho antes de nascer. Sabe Deus as transformações que acontecem dentro daquele casulo. Mas aquele momento de isolamento total faz com que a larva cresça de tal maneira que ela desenvolve antenas para sentir melhor o mundo. Ganha pernas para ser mais ágil e permanecer em lugares irregulares e, principalmente, ganhas asas. Lindas e coloridas asas que podem levá-la a lugares nunca antes vistos. Sua aparência mais ostensiva faz o pássaro e todos os outros predadores perderem o apetite. E seu único medo, agora, é que sua vida efêmera não a permita conhecer toda aquela vastidão que agora se abre na sua frente. Ela só não sabe que esse mundo novo oferece novos perigos, novos predadores e faz parte, se a gente tirar ainda mais o zoom, de um universo mais vasto, maravilhoso e inexplorado ainda!

Mas isso não importa por enquanto. A larva viveu feliz por um tempo. Deu-se conta de que tinha mais coisa lá fora. Teve a coragem de retroceder e sair da sua zona de conforto. Se sacrificou para ir em frente e, convenhamos, isso é um belo exemplo de que para seguir em frente, às vezes é realmente necessário dar uns passos pra trás.

Vai saber se o moonwalk e a rodadinha que eu vou precisar completar não me façam perder este ônibus, mas me permita chegar a tempo de pegar o próximo, mais vazio e com ar condicionado?

Pode ser que o leitor esteja pensando que essas linhas aí de cima são muito genéricas e bobas.

Mas uma das poucas certezas que eu tenho nessa vida é de que nós, seres humanos, estivemos presos antes de nascer, vivemos em uma zona de conforto, fugimos de predadores diversos, descobrimos um mundo cada vez mais vasto e nem sempre alcançável. 

Ora, já vi essas história antes!

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Incofessáveis desejos

 Às vezes, depois de terminar minhas obrigações, gosto de sentar do lado de fora deste café e observar a rua movimentada do centro da cidade. Apesar da estranheza do olhar daqueles poucos que me notam, passo desapercebida, tomando um capuccino lentamente.

Do outro lado da rua tem um açougue. Uma 'butique de cortes especiais', segundo as inscrições no toldo. Dentro dela trabalha um homem alto, muito forte e mal humorado. Depois da vitrine com peças penduradas, atrás do balcão de aço, pode-se notar o brutamontes manejar habilmente uma ferramenta. Ele fica a maior parte do tempo ali, naquela mecanica repetitiva e estranhamente sensual. Quase posso sentir a vibração da tábua e o barulho do cutelo separando ossos da carne. Um festival sangrento. Uma sinfonia de morte. Um espetáculo mórbido, cujo maestro exala suor e virilidade. Virilidade: significante do músculo do braço retesado, duro, produzindo o baque que me deixa hipnotizada.

Ao lado do açougue tem um escritório de advocacia. O dono é um homem franzino, de óculos redondos, pequenos e andar apressado. Não passa dos quarenta, apesar de a têmpora denunciar a chegada da calvície. Além do terno, anda com uma pasta de couro e sapatos pretos brilhantes, perfeitamente engraxados, impecáveis. Parece ser um homem extremamente metódico e organizado. Sua gravata está sempre apertada, o cabelo – apesar de pouco – sempre penteado e a roupa impecavelmente esticada. Assim que passa pelo açougue, escolhe as partes pintadas de preto do piso geométrico em frente ao escritório, como uma mania, um dogma, uma ordem a ser seguida obrigatoriamente antes de abrir a porta. Ordem: confluência e previsibilidade atordoantes e excitantes.

Na verdade, gosto de observar os homens em geral. Presto atenção no porte físico, no andar, na rusticidade de seus movimentos, na essência de sua natureza animal. Logo, perdida nos pensamentos, sinto as pernas formigarem, um frio subir pela espinha e a umidade atingir minhas roupas íntimas inundando e aquecendo o sexo por baixo da roupa. Minha mente voa, cria situações das mais diversas e me permitem ter um momento de luxúria, de prazer mundano.

Me imagino sendo possuída de forma abrupta. A roupa tirada com pressa, a calcinha rasgada, a lascívia do beijo e a respiração ofegante. Sinto mãos rústicas apertando minha cintura e meu quadril, meus seios pressionados contra um peito volumoso, sem a mínima chance de escapar. Gosto de pensar na possibilidade da vontade incontrolável ser o elemento principal da pressa em consumar o sexo. Um sexo intenso e, por que não dizer, violento. Daria tudo para sentir uma mão percorrer meu corpo, enlaçar meus pescoço, rodear as auréolas dos meus seios. Daria tudo pra sentir dedos ásperos apertarem minha coxa, minhas nádegas, com uma força quase insuportável. Gosto de me imaginar sendo possuída em um desses becos ermos do centro da cidade, sendo colocada abruptamente de frente para a parede, tendo a saia levantada e a calcinha colocada de lado, para receber um membro grosso e quente como brasa em uma única forte e viril estocada. O sexo urgente, que não pode esperar um lugar reservado. Precisa ser feito ali, naquele lugar, com o desejo queimando qualquer juizo.

E à noite, no escuro de uma cama, sem poder ver nada, sentir desconhecidos disputarem um espaço na minha pele, braços fortes de açougueiros e mãos gentis de advogados, todos juntos, tentando me possuir, lutando por meu corpo como animais sedentos. Poder tocar, poder sentir seus membros pulsantes com as mãos, sugá-los com avidez e depois ser invadida, sem ordem, por todos eles. Ter orgamos indefinidamente contínuos, ser usada como um objeto e depois, largada no leito, percorrer a mão pelo lençol molhado de suor e sêmen.

Então percebo que já se passou muito tempo, estou mordendo o lábio e segurando a parte interna da coxa com força. A tarde vai caindo e eu preciso voltar, trancar o portão principal do convento, me banhar com água fria e trocar de hábito para a última liturgia do dia.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

O articulista

"(...) Enfim, é preciso se doar, passar por cima do orgulho e, acima de tudo, procurar o diálogo para conferir sucesso a uma relação. O amor não atende regras. Ele simplesmente acontece, de maneira personalizada, e depende de nós adotarmos uma postura que assegure seu sucesso. Em outras palavras, amar é se dedicar ao ponto de abdicar da própria individualidade, não pelo outro, mas pela união em si. 

Não adianta esperar que as coisas se resolvam por elas mesmas. Tente, consiga! Leve sua relação para outro nível. Invente, inove, evite a rotina, seja criativo! Está dentro de você o segredo para a felicidade!"

Depois de ler cuidadosamente cada palavra do artigo que escrevera, anexou o documento no e-mail e mandou para o editor do jornal. Fez umas pesquisas na internet, tentou achar um restaurante de comida japonesa perto de casa e desistiu em seguida. Não estava com fome e, bem, com sorte, teria tempo pra comer no final da noite e provavelmente a maioria dos restaurantes decentes estariam fechados.

Além do mais, comida japonesa estava no cardápio da terça-feira durante todo o tempo que permanecera casado. Invariavelmente, incondicionalmente, terça-feira era dia de comida japonesa. E pronto. O simples pensamento de mudar a rotina o apavorava.

Escrevia para o maior jornal da cidade. Sua famosa coluna saía no caderno de comportamento todas as quartas-feiras e, às sextas, escrevia textos motivacionais e altamente reflexivos em seu blog. Tinha uma legião de leitores fanáticos, que replicavam seus textos na grande rede como se aquilo fosse o santo graal, a chave da plenitude, a resolução de todo e qualquer problema. Isso porque escrevia simplesmente o que as pessoas queriam ler. Soube, em dado momento da vida, que o mundo moderno deixa as pessoas inseguras, confusas, altamente carentes e com auto-estima dilacerada. Colocava uma carga filantrópica no texto, como se detivesse a fórmula de se levar uma vida feliz e plena.

Recolheu a chave do carro, passou a mão na jaqueta pendurada na cadeira e atravessou a redação se despedindo dos colegas, que o cumprimentavam com um olhar admirador e até indulgente, principalmente as mulheres. Ah, as mulheres! Aquelas coisas teoricamente complicadas que precisam de auto-afirmação e de um modo-de-fazer para tudo na vida. Escrevia para as repórteres loiras e gostosas que transitavam nas casas políticas, hipnotizando vereadores e deputados com seus decotes discretos, donas de um poder absoluto mas miseravelmente infelizes por engatar romances com 'porcos machistas' e 'canalhas cretinos'. Mas nunca se esquecia das feinhas donas de consciência avançada que liam jornais, navegavam nas redes sociais e frequentavam os picos da high society, esperando encontrar o príncipe encantado, mister universo cheio de atributos intelectuais quando, convenhamos, iam conseguir, no máximo, um nerd honesto e disposto. Criava um discurso genérico e altamente óbvio, mas fazia seus leitores acreditarem que nunca tinham se deparado com aquelas reflexões. "Como é que eu não pensei nisso antes?". Seu dever era colocar essa pergunta na cabeça das pessoas.

Antes de arrancar com o carro, ligou o rádio e pegou a música que marcou o maior romance de sua vida pela metade. Esperou ela terminar, ligou o iPod e seguiu em frente. Sem cinto. Sem olhar nos retrovisores. Sem se importar. Abriu uma goma de mascar, jogou a embalagem pela janela e parou o carro na faixa de pedestres para esperar o semáforo abrir.

Quando entrou em casa, topou com um ambiente vazio, quase estéril. Suas malas estavam sistematicamente arrumadas em frente ao sofá de três lugares. O restante das coisas já tinha sido levado pela ex-mulher, exceto o porta-retratos da família em cima de uma estante: pai, mãe e os dois filhos sorrindo com uma felicidade genuína em um domingo ensolarado no parque. Pegou a moldura, olhou para ela por alguns segundos e se lembrou da vida perfeita que teve. Fatalmente, claro, lembrou do que causou seu fim. Numa quarta-feira em que publicou um texto comparando lealdade e fidelidade e sua aplicação no dia-a-dia das megalópoles, foi flagrado pela ex-mulher com sua melhor amiga, na sua própria cama. "Fidelidade não tem que ser esforço. Tem que ser genuína. Quem ama não precisa trair. Não há em nenhum momento essa necessidade", dizia o texto. E lá estava ele. Na cama da esposa, com a melhor amiga da esposa, praticando aquilo que condenara um dia antes, no texto que escreveu alternando com SMS para a proto-amante, falando sacanagens leves e prometendo um bom vinho e uma boa 'comida'.

Colocou o que pode no carro e dirigiu até o apart hotel onde estava temporariamente instalado. Recebeu até alguns convites para dividir um apê, mas sua alma egoísta não permitia que estranhos ocupassem o mesmo local que ele. Descarregou algumas caixas, acamodou-as com displicência na entrada e saiu de novo. Parou em uma lanchonete, pediu um combo com batata e refrigerante grandes, comeu ali mesmo no carro e seguiu para um bar, onde sentou e bebeu o resto da noite. Estava um caco. Bêbado, sem mulher, miserável, odiado pelos filhos e esquecido pelos amigos.

Vomitou no banheiro, pagou a conta e foi pra casa. Precisava começar a preparar o texto que falava sobre alimentação saudável, evitar bebidas alcóolicas e praticar exercícios físicos que ia circular por milhares e milhares de perfis na sexta-feira.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Dissonante

Sonhei com uma descoberta
Que pode ser a chave para a liberdade.
Preciso manter a mente aberta;
Espalhar por aí toda a verdade.

Acho que sempre tive a consciência,
Mas esqueço de praticá-la.
Seria ultraje, indecência
Me recusar a seguir essa escala.

Fecho as mãos e finalmente percebo
A força que sempre tive:
Seguir minhas ideias, superar o medo;
Lutar e finalmente ser livre.

Sou a voz na escuridão!
O som perdido, esquecido.
Reverberando nos ouvidos da multidão,
Submisso, oprimido, repartido

Sou o grito, o escândalo!
Guardado em uma caixa selada.
Guerrilheiro, heroi ou vândalo;
Aprisionado em uma realidade inventada.

Tenho em mim a força da mudança
Necessária para a revolução!
De repente acordo, na esperança
De voar e dominar a imensidão!

Mas no abrir da pálpebra cansada,
Antes mesmo da lua se retirar,
Me esqueço da empreitada.
São cinco e meia, é hora de ir trabalhar...

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A deslocada

Poucos momentos da nossa vida nos dão a verdadeira certeza de que não pertencemos a qualquer lugar em que estejamos. Esta é uma história triste, devo alertar. Daquelas que deixam a gente pensando por horas. A nossa personagem principal - sim, é uma "ela" - pode dar um grande aperto no seu coração.

Antes de mais nada, vamos a ela. 

Ela é feia. 

Não. 

Ela não é feia. Só não atende os requisitos dos padrões criados pelo mundo contemporâneo, digamos. Redonda em cima, com parte do corpo torta, inapropriadamente torta. É a versão feminina do bonitão da turma, mas nesse caso é ela quem carrega um apêndice. Um incômodo apêndice. Um apêndice, talvez, determinante para sua condição de excluída. Vai saber?! Também não é esguia e charmosamente inclinada, como algumas de suas amigas. Nem tem o cabelo espetado, estiloso, como aquele punk descolado que, muitas vezes, é usado como trunfo.

Espera! Estou sendo injusto. Em alguns momentos da História, desde sua criação, ela foi essencial. Determinante. Passeava por aí como uma rainha, importante, bonita e atribuidora de estilo. Quem a escolhesse cuidadosamente, gozava de um sucesso tremendo e agradava todos aqueles que, por algum motivo, admirava o trabalho feito. Nessa época, a maioria da turma tinha peso e importância iguais. Ela não valia menos que os bonitões e, se quer saber, era mais usada que as magricelas tortas. Todos as cobiçavam e tinha até quem torcia para ser escolhido no mesmo período. Os bonitões, todos, rezavam para serem usados por cima dela. Era sua época áurea. Uma época em que as coisas aconteciam por causa dela e não apesar dela. Ela dividia períodos, ideias, canções. Colocava cada coisa em seu lugar com um cuidado e maestria impressionantes. Era ela quem mandava no pedaço.

Acontece que o mundo muda. E com o mundo, mudam muitas outras coisas. Conceitos, parâmetros, valores e preferências. E, foi durante uma dessas mudanças que ela perdeu o reinado. O trono sempre foi e sempre será dela por direito, não tenha dúvidas! Mas as coisas começaram a se simplificar, encurtar. Sua aparência voluptuosa não tinha mais charme. A compressão atingiu todos os níveis da produção em geral e, naturalmente, as magrinhas começaram a ganhar mais espaço. Ninguém gosta de assumir, mas na verdade, a turma toda entrou em decadência. Porque aqueles que os utilizavam frequentemente descobriram outros modos de comunicação e daí, meu amigo, não importa mais se você é "ele", "ela", tem apêndice, é punk descolado ou anda por aí em turma. Todo mundo caiu no mesmo buraco. E, como qualquer coletividade que entra em decadência, aqueles que são visualmente mais agradáveis são mais aclamados. Simples assim!

O advento da internet foi quase como sua sentença de morte. O bonitão e a magricela torta se tornaram os responsáveis por levar os utilizadores aonde eles quisessem. Ela se tornou um estorvo, por exemplo, em um lugar que só permitia 140 caracteres. Todos eles se tornaram. Mas ela, em termos de importância, estava muito longe do bonitão, das magricelas e até mesmo do punk descolado.

Hoje, apenas alguns dos utilizadores continuam dando a ela sua importância régia. Mas os lugares onde ela aparece são pouco visitados. Ou ela é simplesmente ignorada. Tornou-se, coitada, sem querer, um fenômeno behaviorista. Tornou-se, ela mesma, parte da psicologia moderna. Sim, apesar de ser lembrada por esses utlizadores cuidadosos, some às vistas dos que a ignoram normalmente. Afinal de contas, à parte a síndrome de Édipo, Elektra e as teorias sexuais Freudianas, a psicanálise já provou que nem sequer chegamos a registrar coisas que nossa mente ignora no dia-a-dia.

Minha amiga, a vírgula, ganhou uma homenagem. Espero que ela fique feliz. Fiz isso porque acho que ela está prestes a se matar. A varrer a própria existência das línguas do planeta. Fiz porque tenho um grande apreço por ela e não quero, de maneira nenhuma, que ela logre sucesso nesse comportamento suicida. Fiz porque, talvez, alguém leia essa homenagem e decida começar a utilizá-la, também.

A vírgula, minha amiga, não é qualquer uma. Mas a vírgula, coitada, está em baixa. Foi trocada por sinais mais atraentes. E, sabe, eu até gosto desse jeito gordinho e desajeitado que ela tem!

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

O escritor

Já era tarde da noite. Sentou na frente do computador, bateu a cinza do cigarro no cinzeiro, prestes a transbordar - reflexo de uma mente inquieta e carente de nicotina e um corpo apático e desanimado. Era a terceira vez que tentava escrever naquele dia. Como todas as outras vezes, ficou olhando o cursor piscar por um longo tempo. Procurava, no fundo da mente, a maneira de iniciar aquele texto e só encontrava um grande vazio. 

Ele estava de pé, em um grande e vasto campo, olhando o nada. Não ventava. Não fazia calor. Não havia mosquitos nem animais. Gritou e percebeu que também não tinha barulho. Estava tudo em uma mudez incólume. Era apenas um grande gramado que se unia ao horizonte em todas as direções. O céu estava azul, sem uma única nuvem. Mas não havia sol. Era apenas um tapete azul claro, que se unia ao verde do gramado em algum lugar lá longe.

Bateu o cigarro no cinzeiro de novo. O cursor do editor de textos continuava na mesma posição. Puxou um trago profundo e soltou a fumaça devagar, para cima, olhando o contorno e as formas que a fumaça ganhava ao alcançar o teto do quarto. A previsão do tempo do rádio que estava ligado na cozinha anunciava uma semana chuvosa e a aproximação de uma frente fria que vinha do sul. Esfregou os pés nus no carpete e bateu o cigarro mais uma vez no cinzeiro. O cursor continuava piscando no mesmo lugar.

De repente um vento frio bateu em suas costas. Virou-se, para ver de onde vinha a corrente, mas continuou sentindo a brisa fria subir pela espinha. Olhou para as nuvens no céu e percebeu que elas iam ganhando um tom mais escuro. Procurou alguma referência naquele vasto campo e não achou nada. Era só um piso verde, que se encontrava, lá longe, com um céu cinzento. Andou de um lado para o outro, olhou para baixo e percebeu que a grama não era de verdade. Era apenas um relvado sintético e perfeitamente sobreposto, folha a folha. Sentiu um ardor na mão esquerda e a balançou, como quem acaba de se queimar.

O cigarro tinha chegado no fim e a brasa da ponta estava em contato com seus dedos. Balançou a mão abruptamente e derrubou o cinzeiro cheio no chão, formando uma nuvem de cinzas que se assentou calmamente no carpete. Xingou, maldisse a vida e foi lavar a mão para aliviar a dor da queimadura. Voltou com a mão ainda molhada e a chacoalhou antes de posicionar os dedos sobre o teclado do computador. Algumas gotas se espalharam pelo monitor e uma delas caiu exatamente sobre o cursor que piscava no fundo branco. Fechou os olho, respirou fundo.

A dor tinha passado e, quando estendeu a mão para ver se estava queimada, sentiu alguns pingos cairem do céu. A chuva caia preguiçosa e esparsa, mal conseguindo molhar sua roupa. Quando alguns dos pingos caiam sobre o chão cinzento, levantava uma pequena nuvem de poeira, que se assentava calmamente. Olhou para o céu azul claro e procurou o ponto de junção com o campo cinza. Firmou a vista, cerrou os olhos e percebeu que uma fina linha separava os dois. Ela piscava em um ritmo entediante.

As tropas americanas tinham invadido algum país do oriente médio. O noticiário do rádio dava conta de milhares de mortes causadas pela explosão de um caminhão bomba na embaixada americana, que ficava ao lado de uma escola. A embaixada veio abaixo e todas as crianças morreram. O analista de conflitos assimétricos modernos dizia que os terroristas estavam cada vez mais sofisticados e bem armados. "Se não fosse pelo petróleo e esse imperialismo idiota, essas crianças não morreriam", pensou. Lembrou da história de dois irmãos que vira no jornal na semana passada. Eles estavam cavando a sepultura do pai recém assassinado pelas tropas invasoras e acabaram salvos de uma explosão porque, pequenos, de 12 e 14 anos, estavam totalmente dentro da cova no momento da explosão. Tinha decidido que ia escrever sobre esse evento curioso, dar um ar noir para a história e colocar toda a culpa no governo. Recolheu o cinzeiro do chão e acendeu outro cigarro. O cursor continuava piscando.

Procurou sinais da chuva nas nuvens, mas os pingos já tinham parado de cair. O vento também tinha parado. Ouviu um grande explosão e choro de crianças. Virou-se para ver o que estava acontecendo e viu um prédio demolido, com um filete de fumaça preta saindo do que deveria ser uma janela. De dentro dos escombros jorrava um líquido preto. Aquele esguicho alcançava, facilmente, uns 10 metros. Sentiu a barriga molhada, pensou na chuva de novo, mas a regata branca agora estava manchada de sangue. Mais à frente, ao lado do prédio demolido, havia um buraco retangular e uma pá. Inclinou o corpo para ver o que tinha dentro. Era ele, com 14 anos, deitado de bruços folheando uma revista ilustrada sobre as Grandes Guerras. Estava se divertindo muito com as imagens da revista. Um bombardeiro passou rasante pelo céu cheio de nuvens e soltou alguma coisa, que caía com um páraquedas. 

Levantou-se. Tomou um copo d'água e foi deitar. Não tinha o que escrever naquela noite. Desligou o computador e adormeceu ao som da estática do rádio que permanecia ligado na cozinha.