quarta-feira, 5 de outubro de 2011

De frente pro crime

Era madrugada de domingo. Rolei na cama, fugindo das partes empapadas de suor do lençol para tentar dormir mais um pouco, mas o calor e uma mosca que insistia em sobrevoar meus ouvidos não deixaram. Levantei, descolei meu terço do peito molhado e fui até a janela de madeira. Com certa dificuldade, abri a portinhola e o ranger das dobradiças enferrujadas prenunciou o que seria o dia. 

Na rua de paralelepípedo, de frente para o bar que fica do outro lado, estava um corpo esfaqueado. O sangue, seco, dançou entre os blocos de pedra, fazendo um labirinto vermelho na ladeira. A pele negra do defunto ganhou um tom amarelo e alguma alma bondosa cobriu a cabeça com o caderno de esportes do jornal, com a foto de um golaço marcado pelo craque da camisa 10 de um time qualquer. 

Um pequeno amontoado de gente já tinha se aproximado para curiar o cadáver. Senti naquela gente a curiosidade mórbida comum dos crimes que acontecem nessa periferia. Pouco depois, o bar já estava lotado de todo tipo de sujeito. Josés junto com traficantes. Marias junto com prostitutas. Todos curiosos para saber de quem era o presunto. No meio do murmurinho uma voz se sobressaiu, seguida de um silêncio constrangedor:

- Bem feito! Esfaqueado na rua a essa hora da manhã? Boa coisa não devia ser. Que todos esses vagabundos morram dessa maneira!

Bonifácio, que voltava da gráfica com uma tonelada de santinhos para sua campanha de vereador, subiu numa cadeira de metal na porta do bar e aproveitou o momento com eloquência:
- É isso que vocês querem pros seus filhos? É assim que vocês querem acordar numa noite qualquer, preocupados com a volta das suas crias? Alguém precisa fazer alguma coisa! Vocês precisam de um representante na câmara para lutar por mais segurança, por mais condições de vida! João, distribua alguns aí pro pessoal! Vou deixar duas caixas de cerveja pagas aqui. Não se esqueçam: na próxima eleição, votem Bonifácio!

Aquele discurso cheio de gestos inflamou a claque que ouvia com atenção. Um tanto de gente se amontoou no balcão para lutar por um copo da cerveja recém anunciada e outro tanto discutiu as palavras que tinham acabado de sair da boca do político, enquanto agitavam os santinhos contra o corpo para fazer vento. O calor abafado já tinha espalhado no ar um odor de mortandade. O sangue cheirava a açougue, com a diferença de que era mais ácido e mais forte.

Cocei a barriga e percebi um homem se aproximando com uma bancada montada, cheio de correntes, pulseiras, aneis e vidros de perfume. Ele andava por entre a multidão anunciando os produtos. Parava nas mulheres, tirava alguns exemplares das bijuterias baratas e as experimentava nos pescoços suados que, a essa altura, já tinham esquecido do morto e agora pechinchavam com o ambulante.

Um pouco pra direita, a baiana que costuma vender acarajé na porta da igreja da matriz já tinha montado a barraca e ateava fogo no carvão para fazer espetinhos. A cerveja já tinha acabado, algumas confusões já tinham se armado e acalmado e o número de pessoas aumentava com o passar do tempo. 

Ja era alta madrugada e, de súbito, ouvi os batuques do pessoal que subia o morro, voltando de um ensaio na escola de samba. A baiana teve que largar os espetinhos queimando para acudir a porta-bandeiras que caíra numa convulsão estranha. Vai ver era o calor. Vai ver tinha baixado um santo. Não sei. As crianças corriam e gritavam em volta do defunto que permanecia ali, estatelado com o jornal na cara. A polícia ou o IML não tinham dado nem sinal de vida.

Quando alguém da igreja evangélica começou a pregar a palavra de Deus com ardor e um bíblia levantada, o pessoal foi se dispersando, devagar. Domingo ia ter jogo do Flamengo e, agora, um monte de negras cheirosas passeavam pelas calçadas. Observei a movimentação mais um tempo. O bar fechou, a rua esvaziou e o corpo jazia ali, inerte, esperando alguma ação enquanto seu fedor tomava conta do ambiente.

Alguns rapazes largaram os tambores de lado para levar a passista no colo, enquanto outros ajudavam a baiana a desmontar a barraca. Fiz o sinal da cruz, por precaução, e fechei a janela. Era só mais um domingo começando.



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