terça-feira, 20 de setembro de 2011

O articulista

"(...) Enfim, é preciso se doar, passar por cima do orgulho e, acima de tudo, procurar o diálogo para conferir sucesso a uma relação. O amor não atende regras. Ele simplesmente acontece, de maneira personalizada, e depende de nós adotarmos uma postura que assegure seu sucesso. Em outras palavras, amar é se dedicar ao ponto de abdicar da própria individualidade, não pelo outro, mas pela união em si. 

Não adianta esperar que as coisas se resolvam por elas mesmas. Tente, consiga! Leve sua relação para outro nível. Invente, inove, evite a rotina, seja criativo! Está dentro de você o segredo para a felicidade!"

Depois de ler cuidadosamente cada palavra do artigo que escrevera, anexou o documento no e-mail e mandou para o editor do jornal. Fez umas pesquisas na internet, tentou achar um restaurante de comida japonesa perto de casa e desistiu em seguida. Não estava com fome e, bem, com sorte, teria tempo pra comer no final da noite e provavelmente a maioria dos restaurantes decentes estariam fechados.

Além do mais, comida japonesa estava no cardápio da terça-feira durante todo o tempo que permanecera casado. Invariavelmente, incondicionalmente, terça-feira era dia de comida japonesa. E pronto. O simples pensamento de mudar a rotina o apavorava.

Escrevia para o maior jornal da cidade. Sua famosa coluna saía no caderno de comportamento todas as quartas-feiras e, às sextas, escrevia textos motivacionais e altamente reflexivos em seu blog. Tinha uma legião de leitores fanáticos, que replicavam seus textos na grande rede como se aquilo fosse o santo graal, a chave da plenitude, a resolução de todo e qualquer problema. Isso porque escrevia simplesmente o que as pessoas queriam ler. Soube, em dado momento da vida, que o mundo moderno deixa as pessoas inseguras, confusas, altamente carentes e com auto-estima dilacerada. Colocava uma carga filantrópica no texto, como se detivesse a fórmula de se levar uma vida feliz e plena.

Recolheu a chave do carro, passou a mão na jaqueta pendurada na cadeira e atravessou a redação se despedindo dos colegas, que o cumprimentavam com um olhar admirador e até indulgente, principalmente as mulheres. Ah, as mulheres! Aquelas coisas teoricamente complicadas que precisam de auto-afirmação e de um modo-de-fazer para tudo na vida. Escrevia para as repórteres loiras e gostosas que transitavam nas casas políticas, hipnotizando vereadores e deputados com seus decotes discretos, donas de um poder absoluto mas miseravelmente infelizes por engatar romances com 'porcos machistas' e 'canalhas cretinos'. Mas nunca se esquecia das feinhas donas de consciência avançada que liam jornais, navegavam nas redes sociais e frequentavam os picos da high society, esperando encontrar o príncipe encantado, mister universo cheio de atributos intelectuais quando, convenhamos, iam conseguir, no máximo, um nerd honesto e disposto. Criava um discurso genérico e altamente óbvio, mas fazia seus leitores acreditarem que nunca tinham se deparado com aquelas reflexões. "Como é que eu não pensei nisso antes?". Seu dever era colocar essa pergunta na cabeça das pessoas.

Antes de arrancar com o carro, ligou o rádio e pegou a música que marcou o maior romance de sua vida pela metade. Esperou ela terminar, ligou o iPod e seguiu em frente. Sem cinto. Sem olhar nos retrovisores. Sem se importar. Abriu uma goma de mascar, jogou a embalagem pela janela e parou o carro na faixa de pedestres para esperar o semáforo abrir.

Quando entrou em casa, topou com um ambiente vazio, quase estéril. Suas malas estavam sistematicamente arrumadas em frente ao sofá de três lugares. O restante das coisas já tinha sido levado pela ex-mulher, exceto o porta-retratos da família em cima de uma estante: pai, mãe e os dois filhos sorrindo com uma felicidade genuína em um domingo ensolarado no parque. Pegou a moldura, olhou para ela por alguns segundos e se lembrou da vida perfeita que teve. Fatalmente, claro, lembrou do que causou seu fim. Numa quarta-feira em que publicou um texto comparando lealdade e fidelidade e sua aplicação no dia-a-dia das megalópoles, foi flagrado pela ex-mulher com sua melhor amiga, na sua própria cama. "Fidelidade não tem que ser esforço. Tem que ser genuína. Quem ama não precisa trair. Não há em nenhum momento essa necessidade", dizia o texto. E lá estava ele. Na cama da esposa, com a melhor amiga da esposa, praticando aquilo que condenara um dia antes, no texto que escreveu alternando com SMS para a proto-amante, falando sacanagens leves e prometendo um bom vinho e uma boa 'comida'.

Colocou o que pode no carro e dirigiu até o apart hotel onde estava temporariamente instalado. Recebeu até alguns convites para dividir um apê, mas sua alma egoísta não permitia que estranhos ocupassem o mesmo local que ele. Descarregou algumas caixas, acamodou-as com displicência na entrada e saiu de novo. Parou em uma lanchonete, pediu um combo com batata e refrigerante grandes, comeu ali mesmo no carro e seguiu para um bar, onde sentou e bebeu o resto da noite. Estava um caco. Bêbado, sem mulher, miserável, odiado pelos filhos e esquecido pelos amigos.

Vomitou no banheiro, pagou a conta e foi pra casa. Precisava começar a preparar o texto que falava sobre alimentação saudável, evitar bebidas alcóolicas e praticar exercícios físicos que ia circular por milhares e milhares de perfis na sexta-feira.

Um comentário:

Tita disse...

O supra sumo da hipocrisia... Adorei