terça-feira, 16 de outubro de 2007

Capítulo II - Tiro certeiro.

Lampião conseguiu com certa dificuldade enxergar um rastro de sangue escuro que se estendia da lateral da árvore para atrás dela. Levantou a mão esquerda, ordenando a todos que ficassem imóveis. Olhou-os um por um, tentando identificar os faltantes. Deu falta apenas de um, mas na verdade os ausentes eram dois: Faltavam Matuto e Coqueiro. Os pertences do primeiro repousavam-se próximos à fogueira extinta. Nem traço do segundo. O tiro, que parecia ter ecoado por todo o sertão, causara alarde não só nos homens, mas também nos animais. Os cavalos estavam irrequietos, agitados, embolando as cordas que os prendiam. Quase dava pra sentir o cabresto machucar suas bocas. Uma grande nuvem preta tapou por alguns instantes a luminosidade da lua. Com seus rifles apontados, Lampião e Corisco seguiram devagar a marca no chão. Atrás deles os outros homens, todos dispostos a disparar contra qualquer coisa que se movesse naquela escuridão pungente. O ar estava pesado e tinha um odor de mortandade, odor esse que se alastrava rapidamente pelo calor do sertão sempre que sangue era derramado.

Com os ouvidos, Matuto localizou exatamente onde estava sua vítima. Pôde deduzir, inclusive, sua altura e seu peso através do barulho que fazia. De uma só vez, saiu de trás da árvore e disparou. O tiro foi certeiro e fatal. Matuto, silente e discreto como sempre o fora. Cerrou os olhos na escuridão para ver se aquele corpo que jazia inerte estava realmente morto. Assim que a fumaça e o odor da pólvora se dissiparam, Matuto sentiu o cheiro de sangue e mortandade no ar pesado, que sempre se alastrava rapidamente pelo calor do sertão quando havia um assassinato. E, com muita dificuldade, transportou o corpo pesado para mais longe, deixando um rastro de sangue escuro que mal dava pra ser visto na escuridão da noite. Agachou sobre o corpo e fez o sinal da cruz, iniciando uma oração em silêncio. Retirou o facão da bainha com calma e viu o reflexo da lua sumir na lâmina, sendo encoberta por uma grande nuvem negra. Fechou os olhos, respirou fundo e começou a retirar o couro de sua vítima de forma destra e vagarosa.

Lampião e Corisco sobressaltaram-se ao ver aquele homem sem camisa sobre um corpo, mutilando sua pele, arrancando uma nesga de aproximadamente dez por dez centímetros. Quando chegaram mais perto da estranha cena, observaram a vítima sob Matuto, que estava ofegante e com as mãos cobertas de sangue. Era um bezerro, malhado, de porte mediano e corpulento, um modelo totalmente atípico para os padrões dos bezerros nordestinos, que geralmente eram subnutridos e pequenos. Sobre a mutilação, Lampião não estranhava mais. Todas as vítimas que o compadre fazia nas batalhas e que não eram levadas para longe, tinham um pedaço de seu couro arrancado. Era como um troféu. Matuto dizia que um dia ia costurar uma colcha de retalhos, feita somente de pele de seus inimigos. Enquanto isso não acontecia, curtia as peles no sol dos dias e as guardava na algibeira de seu uniforme. Dos homens, preferia tirar a pele do lombo, das mulheres costumava rasgar os seios e dos animais sempre separava uma parte do couro que recobre as costelas.

O bezerro estava caído, um tiro atravessara toda a cabeça, vazando os dois olhos com uma precisão quase cirúrgica. Estava claro que a morte tinha sido instantânea e que, provavelmente, Matuto sentira uma ameaça com a aproximação do animal. Terminada a retalhadura do novilho, Matuto guardou o couro no bolso, lavou as mãos com água da cabaça e se aproximou de Lampião.

- Pede os homi tirá um pedaço pra mode nóis comê e levá o resto pra dividí com o povo necessitado da cidade assim que o dia clareá, cumpadi.

- Precisa deixá um pedaço pra servi pro carcará. Logo ele chega pra disputá a carne com os abutre. – Exigiu Lampião.

- Tá feito. – Matuto virou as costas e voltou para o acampamento, tão quieto quanto passara o dia anterior.

Pouco tempo depois do início do crepúsculo, um sibilar de cascos de cavalo podia ser ouvido de longe. Os momentos que passaram durante a noite, no episódio do bezerro morto, foram cansativos e deixaram todos ressabiados. Dessa vez quem era esperado finalmente chegou. Lampião abriu um sorriso quando avistou Sabino em cima de seu cavalo. O homem apeou-se, abraçou longamente o chefe e admirou a cena que o envolvia. Há muito não via um exército de sertanejos, prontos, sempre prontos para o que der e vier.

- Comé que tá, meu patrão?

- Arre, Sabino! Pensei que tu num ia nunca chegá, mode que nós já estava de saída.

- Não cumpadi. Eu sempre chego. E já to doido pra rasgar um bucho de macaco!

- Se aquete, homi. Nós precisa decidí o que fazê primeiro. Matuto! Corisco! – O chefe queria reunir a cúpula ali mesmo, já para decidir qual direção tomar.

Os dois se aproximaram devagar. Sentiam certo respeito por Sabino, por quem Lampião tinha consideração de irmão. A própria figura do cangaceiro era distinta e imponente. Andava com a roupa impecável, as armas limpas com esmero e o chapéu alinhado. Nunca falava alto e suas ordens, por mais ríspidas que fossem, pareciam um pedido de um ente querido em extrema necessidade.

Sabino era valente e inteligente. Sagaz. Lampião se valia disso para montar todas as estratégias das invasões. Sua perspicácia espalhara fama de matador e ele foi um dos grandes responsáveis pelo sucesso que faziam no nordeste. Seu nome estava envolvido em quase todas as lendas que existiam a respeito do bando, como a história que se contava de quando, devido à estratégia de Sabino, três cangaceiros enfrentaram uma volante com mais de cento e cinqüenta homens e mataram todos, sem nenhum arranhão. Na verdade, Lampião gostava de fazer saberem de suas companhias, que em geral aterrorizavam o povo mais do que sua própria figura.

Enquanto cinco homens subiram o morro anunciando o sucesso da partilha do novilho na cidade, os três comandantes definiam o que fazer dali em diante. Precisavam atravessar o estado até chegarem em Mossoró, mas não podiam passar pelos grandes centros. Já corria à boca solta que o bando era numeroso e perigoso e todas as centrais policiais já estavam em alerta, além das rondas das volantes - espécie de milícias civis chefiadas por militares e mantidas pelo governo – que percorriam todo o nordeste em busca de um homem do cangaço. O grupo precisava correr pelas zonas periféricas para chegar são nas redondezas de Mossoró e encontrar com Massilon e seu exército com saúde e disposição. Corisco arriscou um palpite:

- Nós pode ir até Natal beirando a serra. Macaco nenhum vai ver nós. E o Coqueiro já labutou pra uns coroné lá em Mossoró, pode ajudá nós a chegá nos arredor sem perigo.

- Tá feito. – Respondeu Lampião, com a anuência de Sabino e Matuto. – Manda chamar Coqueiro.

Um homem se destacou prontamente para procurar o tal homem de alcunha "Coqueiro". Não achou ninguém.

- Chefe, não tem nenhum Coqueiro no meio de nós, não!

- Tá doido, cabra? Onde bobonica ta o homi, então? - Outro homem, de nome "Trovão" conhecia bem as redondezas de Mossoró e se prontificou a ajudar a guiar enquanto o outro não aparecia.

Nesse momento, José Cesário, conhecido no meio dos homens do cangaço como “Coqueiro”, estava recebendo a quantia de vinte mil réis por uma informação preciosa dada ao chefe de uma das volantes mais perigosas do sertão, que prontamente se dirigiu a Mossoró para alertar o prefeito e os cidadãos.

Lampião e seu bando continuaram viagem na direção da cidade de Luís Gomes. Três dias depois, quando chegaram, se depararam com um pequeno grupo de guerrilheiros com a custódia de Coqueiro, tido como refém. Os algozes pediam que o grupo recuasse em troca da vida do cangaceiro. Todos os homens do bando se entrincheiraram e um pequeno grupo liderado por Matuto saiu nas divisas da cidade na esperança de pegar os inimigos desprevenidos, pelas costas. Dois dias de cercos e ameaças se passaram e, às duas horas da tarde, com o sol a pino e a fome batendo forte, o primeiro tiro foi disparado. O homem que se dizia líder do grupo inimigo caiu com um tiro certeiro cravado na nuca. Pela perícia do ataque, Lampião sabia que a tentativa de Matuto tinha sido bem sucedida. Mais um combate estava começando sem previsão de término. Lampião e seus homens estavam em absoluta maioria, mas não se podia saber por quanto tempo.
Era fim do mês de maio.
(Continua...)

7 comentários:

Leonardo Ferlin disse...

Boa porra!
Putz, melhorou muito a narrativa Vini, essa parte ta ainda melhor que a primeira.
Coqueiro filhodaputa! E quanto ao Matuto, ele fez aula de tiro? hehehe.

Porra, o tiro era só um bezerro, só no próximo episódio que vai começar de verdade a carnificina=) Demoro!

Abraços brother!

Anônimo disse...

Então era um BEZERRO?????
Emocionante!
Te amo!

Anônimo disse...

Não demore para postar a terceira parte.

Américo disse...

Olá Vinícius
Aqui é o Américo. Estive acessando e, encontrei o seu blog. Eu lerei com mais calma todo o conteúdo.

Então, apenas para ter uma idéia, eu gostaria de saber se a ilustração deverá abordar o tema (cangeceiros e o nordeste) ou se vai ser específica e relacionada a um dos contos em especial?
Qualquer informação, mande um e-mail, ok?

americo_so@hotmail.com

Também criei um blog há um bom tempo. Estou restruturando e está passando por reformas. Caso interesse: http://requiemforthechronicler.blogspot.com/

abraços, até a próxima!

Iobaf´ disse...

Meninão, demorei, mas faço questão de registrar minha passagem por este texto. Está de parabéns, pelos já postados e, certamente, pelos que ainda virão.

Bijunda! E aguardo os próximos capítulos. Não vejo a hora da Maria Bonita entrar pra apimentar a estória. Ahauhauhahahu!

Anônimo disse...

Olá, Vinicius.Muita história para contar, hein ? Pois é, seu texto é bom, mas um pouco longo talvez para um blog. Não sei...Parece-me que vc. está muito preso à descrição minuciosa e isso não está deixando vc. dar "tempero" ao seu texto.A meu ver, a temática pede um texto mais enxuto e seco.Não sei se vc. me entende.Mas, com certeza, o tempero e o ponto vc. conseguirá à medida que escrever mais e mais.Por isso, mãos à obra e reúna logo essas histórias.Quando publicar texto novo, me avise, ok ?
Beijos

Ana Ziccardi

Um exemplo do que disse:"Retirou o facão da bainha com calma e viu o reflexo da lua sumir na lâmina, sendo encoberta por uma grande nuvem negra".Há toda uma confusão aqui pq. anteriormente vc. cita a "escuridão da noite" e, agora, a lua reflete na lâmina do facão.O tempo em que ele retira a lâmina e o reflexo some é um instante...

Marco Aurélio disse...

Mano, concordo com a professora (credo), até pela temática: história de sertão é melhor quando é seca. Seu texto tá muito litorâneo, as ondas se esparramando...