quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Bicho Homem

Se serviu de mais uma dose daquela bebida amarelada, doce no começo mas amarga na boca depois da ingestão. Sentiu os órgãos internos queimarem gradativamente, conforme o líquido ia passando. Primeiro a garganta, e então o esôfago, depois o estômago. Era a "cavalar", diziam.


Refletiu sobre a origem daquele destilado. Ninguém o sabia. Chegava em garrafas pequenas, a cada dois meses. Um homem conhecido apenas por Chicão as trazia. A bebida era disputadíssima pelos ébrios habituais que freqüentavam aquele botequim escuro situado em uma rua erma da cidade.

Pediu mais uma dose da bebida e apoiou os cotovelos no balcão de madeira carcomida por cupins. Escondeu o rosto nas mãos por alguns segundos, coçou a barba por fazer e olhou para o copo, servido de uma nova dose da "cavalar". Não sabia bem como fora parar ali, nem como conhecera aquela estranha bebida. Lembrava-se apenas de ter saído sem rumo, após um dia cheio de contratempos.

Junto com a origem da bebida, começou a tentar identificar também a origem dos problemas, dos sentimentos e entrou em um mundo de metafísica; "Coisa de bêbado", pensou. No desespero, os porquês da vida começam a ficar sem sentido, fazendo parecer absurdo o simples fato de questionar qualquer coisa. Nem chorar, nem gritar, nem fazer alarde. Beber apenas era o suficiente, para esquecer da realidade pungente. Naquele líquido dourado, que agora já brilhava no copo sujo, estava a chave para o esquecimento dos problemas.

Olhou em volta, procurando algum pai de família. Viu apenas homens com aparência cansada e derrotada, daqueles que vemos na sarjeta de uma rua qualquer caído às seis da manhã. Cada um com seus incômodos, cada um com suas derrotas. Sorveu mais um copo, de uma só vez.

- Cigarros. Você tem cigarros?

- Qual marca?

- Qualquer uma. Fósforos também.

- Aqui está.

- Me bota mais uma dose da cavalar.

Acendeu o cigarro somente depois de olhar em volta e ter certeza de que não havia ninguém conhecido no recinto. Acendeu de modo clássico, como somente um galã de cinema da época que era um jovem apaixonado o faria. Lembrou dessa época de forma terna e nostálgica e pensou como o curso das coisas mudou desde então. Namorava, pretendia se casar. Saía, ia para as festas de rockabilly vestido no melhor estilo Jerry Lee Lewis. Dirigia dodges e fords possantes. Riu-se das lembranças, essas entrecortadas por tragadas profundas que produziam muita fumaça, ou pelo menos parecia quando passava em frente a uma lâmpada acesa.

Flagrou-se com os olhos marejados e tratou logo de voltar à realidade. Homem. Bicho homem. O que faz um homem dedicar sua vida a outros da forma que o fazia se não o divino? Aqueles que não merecem, aqueles pecadores, aqueles ímpios que só o procuravam nas adversidades. Gente mal agradecida. Não reconhecia as coisas que Deus fazia a elas. Homem. Bicho homem. Filho da puta do bicho homem.

Percebeu então que de certo modo tinha o mesmo papel da "cavalar". Era raro, sem procedência, mas auxiliava as pessoas trazendo cura e conforto espiritual.

Bêbado de verdade, olhou pela janela e viu que o dia estava amanhecendo. Jogou o dinheiro no balcão e saiu. Precisava ir embora. Precisava passar a batina e fazer a barba para celebrar a missa que se iniciaria às sete.

4 comentários:

Leonardo Ferlin disse...

Maravilhoso! Nada melhor do que começar um blog com um conto sobre bebidas, cigarros e padres!

Falando sério, mandou bem Vini, ta meio "beat" sua escrita.

Ja linkei teu blog la no meu.
Bjos queridão.

Anônimo disse...

Adorei vina!
Assim ficarei acanhada em começar escrever o meu

Maravilhoso!!!
Ate senti o cheiro de bebida e cigarro no rosto,perfeita

Estou realmente apaixonada pela maneira que essa ``panela´´ escreve

Iobaf´ disse...

Mano, eu juro que vi esse cara... É, vi, sim. Ele estava lá com sua barba por fazer e sua descofiança que me chamou a atenção. Não me lembro em que bar e muito menos em que rua "erma", mas era ele. Eu o vi, e pude ver graças a sua descrição. (rs)
Parabéns, Vininha! Entre outras coisas, tenho orgulho de ter encontrado amigos como você na facul!
Bijunda! E aguardo, ansioso, pelo próximo texto, que, certamente, será tão bom ou melhor do que este.

Leonardo Ferlin disse...

Pronto, montei um esquema que acho que funcionará com o meu blog. Isso se a maldita preguiça permitir.

prometo me policiar.
Alias, agurado anciosamente pelo proximo texto seu.