sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

A Promessa

Cheguei em casa meio tonto, com um gosto de fel na boca. Uma mistura de cerveja, cidra barata e fumaça de fogos de artifício. Aquilo que causou náuseas; o estômago estava embrulhando. Limpei os pés no tapete - como de costume - e entrei. Tudo era o mesmo.

A casa continuava intacta. A mesma do ano passado. Também, pudera! Fazia apenas algumas horas que tinha saído para curtir a noite de réveillon. Por outro lado era um novo ano. Algo ali precisava mudar. Não na casa em si, na disposição dos móveis ou na cor das paredes. Olhando em volta, sentia um quê de bagunça e era muito difícil discernir se a faxina precisava acontecer dentro ou fora do meu ser.

Não passava de duas da manhã. Alguns fogos retardatários insistiam em estourar nos céus, com persistência e intervalo de tempo irritantes. Enquanto mudava de roupa, notei o quadro no centro de uma das paredes da sala. Nunca o abstracionismo fez tanto sentido para mim. Consegui ver toda a minha infame existência naquele conglomerado de amarelos, vermelhos e cáquis. Cada curva, cada mudança de tom me fez relembrar algo na minha vida.

Cheguei mais perto. O verde me fez lembrar a infância, quando corria livre pelas pastagens da fazenda do tio Jerônimo, no interior. Passava todas as minhas férias de verão por lá. Perseguia sagazmente filhotes de ovelha e de quando em vez era também perseguido por cabras furiosas. Sorria muito, chorava manhoso por um agrado ou presente e sempre, sempre estava com algum machucado ou arranhão. Devo ter sido o moleque mais espoleta da terra.

Mas e esse sentimento. Continua. O que será que está faltando?

O vermelho, em uma curva, sobrepondo maioral as outras cores, me lembrou do primeiro encontro com Luiza. Eu tinha uns quinze anos. Ela, uns treze. Foi amor à primeira vista. Naquele momento, em que ela tropeçou no meio da sorveteria e carimbou minha cara com sorvete sabor morango, eu tive a certeza de que ela ia ser minha mulher para o resto da vida. Tomamos muitos outros sorvetes naquelas férias e nas outras que a sucederam.

Se pelo menos pudesse saber o significado desse vazio dentro de mim.

O primeiro beijo que dei em Luiza aconteceu em um dia ensolarado, debaixo de uma figueira marrom como a reta que cortava abruptamente o quadro na diagonal. Lembro como se tivesse acabado de acontecer. Ela corou e se riu das cócegas que os pelos que começavam a nascer na minha cara faziam. Tinha um sorriso lindo. Criava covinhas em suas bochechas rosadas. Ela ria meio de lado, como quem esconde um segredo. Ria como anjo, sua mãe costumava dizer.

Serão saudades de Luiza? Então por que não aconteceu nos outros anos?

Crescemos, nos formamos e casamos. O vestido de Luiza era longo e branco, como a pincelada geniosa do pintor no canto do quadro. Olhei pro lado e vi aquele par de chinelos azuis. Eles estavam ali nos últimos anos sempre parados, como esperando ela chegar, tirar os sapatos do lado de fora da casa e gritar comigo antes de calçá-los, por conta de meu péssimo modo de pisar com o pé sujo no chão limpo.

Os chinelos eram azuis como a água que levou minha mulher embora dessa vida. E era azul também o tom que mais me chamou a atenção naquele quadro. Me lembro exatamente do dia em que cheguei em casa e todos estavam a minha espera, entreolhavam-se como se sorteassem em uma roleta maldita quem iria me dar a notícia. Meu pai me abraçou e chorou aos soluços. Não entendi nada. Por que aquele clima fúnebre? Onde estava Luiza? Não souberam me explicar muito bem. Um erro de cálculo, a água da piscina, uma convulsão. Luiza morreu. Minha vida ficou negra como parecia ter sido a última pincelada do quadro, com ares de mal acabado, sem um fim

definido. Apenas o negrume e a dor. Luiza repousa em paz. E vive em minhas memórias.

Lembrei do vazio incógnito que estava me incomodando. Olhei pela casa: tudo estava intacto. Nada mudou. Era a mesma casa em que Luiza corria saltitando nas manhãs de domingo. Os móveis, a cor das paredes, o chinelo, o quadro. Lembrei do que faltava, e desse vazio que não existia nos últimos anos. Faltou a promessa. A promessa de que ia continuar tentando viver com sua ausência, como fazia todas as viradas de ano. Não prometia ganhar mais dinheiro. Nem perder peso. Muito menos começar um novo projeto. Prometia apenas continuar.

Baixei a cabeça, e antes mesmo da primeira lágrima rolar do meu rosto e atingir o chão, já tinha feito a promessa. Mas prometi, dessa vez, não fazer promessas de ano novo.

4 comentários:

Zúnica disse...

Datas como ano novo nos obrigam a ver as coisas como um "recomeço", forçam uma retrospectiva nostalgica, e o passado é como a grama do vizinho, sempre mais verde do que a nossa. belíssimo texto.


Sou aluno da Ziccardi também, estudo na Vergueiro. Entrei no seu blog através do "amor aos domingos".

Anônimo disse...

Oi, Vini, desculpe a demora, mas consegui chegar aqui.

Adorei seu texto pelo fator surpresa.É essa qualidade que me atrai nos seus textos, quando começamos a formular hipóteses sobre o que se seguirá, somos surpreendidos pelo autor. A idéia de partir do quadro e, a partir de sua imagem, construir seu texto foi genial.
Quem tem um vazio na alma entende bem o que sua personagem sente.
Estou ansiosa pelo próximo.

Beijos

Anônimo disse...

Amor, esse é o meu texto predileto.
Parabéns mais uma vez.
Bjos

Daniela Israel disse...

Estou maravilhada com a beleza do seu texto.
Sigo lendo os outros...

Beijão*