segunda-feira, 24 de março de 2008

Comprimidos e conhaque*

- Nome?
- Malu.
- Malu de quê? Quero o nome completo.
- Maria Lúcia da Silva
- Profissão?
- Puta.
- Como assim, “puta”?
- Puta! Vendo meu corpo por dinheiro. Faço sexo com homens para garantir meu sustento.

Já era noite quando Malu saiu da delegacia. Aquele dia não lhe renderia mais nem um tostão. Estava decidida. Nunca mais ia passar uma madrugada naquelas ruas imundas e infernais da cidade. Disputava espaço com travestis violentos, bêbados valentes e metidos a estupradores, jovens ricos e justiceiros e as colegas de profissão, sempre desleais e traiçoeiras.

Lembrar de todas as vezes que foi espancada, queimada por pontas de cigarro acesas e molhada de urina ou outro dejeto deixava Malu triste e desanimada. Nunca fora outra coisa se não objeto sexual. Não teve opção. Só na adolescência, já sozinha no mundo, foi entender que aceitar doces do pai em troca de silêncio enquanto era violentada também podia ser uma forma de prostituição. Seguiu em frente. Rodou boa parte do país em boléias de caminhão, ao lado de homens barrigudos, fedidos e, como seu pai, violentos. Fazia sexo por comida, por dinheiro, por carona ou simplesmente para não ser morta.

Aliás, já considerava morta a parte do seu corpo que servia de escape para aqueles monstros barbudos que encontrava. Não via serventia para aquele buraco. Na cabeça da jovem Malu, servia apenas para excretar seus restos e servir de abrigo para corpos cansados, inseguros e solitários.

Quando chegou na cidade, depois de depender da bondade condicional de desconhecidos, percebeu que sua vida poderia ser diferente. Firmou ponto em uma das ruas do centro e foi dividir um quarto com mais três mulheres da vida. Uma delas, Raíssa, ensinou à Malu a forma mais fácil de sair da realidade. “Um comprimido de Lexotan e um gole de conhaque! Está aqui a sua passagem para o mundo perfeito! O mundo do seu jeito, com a sua cara!”.

Assim que o cruel assassinato de Raíssa apareceu em todos os noticiários, Malu e suas companheiras decidiram mudar o horário de trabalho. Era mais seguro trabalhar à tarde, diziam. Malu agora dividia o espaço com camelôs, vendedores e os transeuntes que lotam aquela região da cidade todos os dias. Sem preocupação com a polícia e com homens violentos, tudo era mais fácil. Seus clientes barbudos foram substituídos por jovens de terno e gravata, igualmente solitários e inseguros e sua vida se resumia em uma única coisa: garantir a cartela de comprimidos e a garrafa de conhaque, seu passaporte para a felicidade.

Nada de ruim existia no caleidoscópio que aquela mistura criava na cabeça de Malu. Lá, onde era realmente livre, podia voar, amar e rir sem medo. Nada lhe custava e a brisa era morna e suave. Seu corpo moreno e esguio não carregava nenhuma cicatriz. O céu era azul, sem nenhuma nuvem. Visitava o mar sempre que queria e descansava sob a sombra de árvores com frutos saborosos. Ali, sim, a vida de Malu era perfeita. Seus cabelos, castanhos e cacheados, caíam sobre os ombros com leveza. Seu sorriso era alvo e brilhante. Sua gargalhada ecoava nos quatro cantos.

Mas nada dura para sempre. Nem o sonho insano que o comprimido causava. Logo, o céu ficava escuro, uma dor insuportável tomava conta de sua espinha e o despertar era amargo, tinha gosto de fel. Malu precisava levantar, aprontar-se para o trabalho e sair na esperança de ter uma tarde agradável, sem precisar responder às perguntas do delegado:

- Nome?
- Malu
- Malu de quê? Quero o nome completo
- Maria Lúcia da Silva
- Profissão?
- Puta.

*Texto postado originalmente no blog do projeto Pândega Literária

10 comentários:

Américo disse...

Olá Vinícius.

O texto está muito bom mesmo. Parabéns. Principalmente agora em que você especificou: "Assim que o cruel assassinato de Raíssa apareceu em..." A leitura se torna mais contínua, sem aquela "quebra" de antes. É isso aí, meu.

Um abraço.

Zúnica disse...

Rapaz, deu até vontade de tomar um Lexotan!

Gostei do modo como você destrinchou a vida da puta pobre, retirante. A sujeira do corpo, a confusão da mente… só achei que, se ela é tão pobre, tão simples, a fala dela ao explicar a profissão para o delegado devia ser menos erudita. E não entendi bem a descrição das pessoas com quem ela dividia o espaço noturno, a mistura num mesmo ambiente de estrupadores, jovens ricos e justiceiros.

A descrição do delírio de Malu ficou ótima, parecia um videoclipe de uma banda New Age meio veada, sabe? Muito bom.

Agora dá licença, que eu vou dar um pulo na farmácia…

Fernando Thadeu disse...

Um verdadeiro SIN CITY, tudo sombrio no começo, e um final digno de Quentin Tarantino. Só faltou um pouco mais de sangue no meio e desavenças. Não sei se sou eu que gosto tanto de violência e sangue, para dar este tipo de comentário ou o q. Mas sei que você seguiu uma linha textual muito boa, mas faltou um pouquinho de tempero nessa idéia.

Leonardo Ferlin disse...

Hahahahhaha o Fernando quer ver sangue e briga!

Mandou bem pra cacete!, é dificil mandar uma história complexa dessas em poucas linhas, parabens putão!

Leonardo Ferlin disse...

Por falar nisso, to de blog novo, apaga esse rockdaily daí.
Você tem razão, tenho que escrever mesmo.
www.videoniac.blogspot.com

Der Erzengel disse...

Gostei do texto. Se eu estivesse na minha fase mais solidária perante o sofrimento alheio em detrimento ao meu próprio ficaria até com peninha da Malu u.u'

Falando sério agora, curti mesmo. Já me prendeu a atenção o começo do texto, a forma de introduzir a personagem!

Abraços, maninho!

Iobaf´ disse...

Vina,
Já que você não convida os irmãos pra visitarem seu blog, resolvi dar uma passadinha, pra conferir se tinha algo novo e tal... Nada! (Cuzão)
Mas... li seu último texto, e pensei que precisava registrar a minha admiração não só por vc, mas pelo seus textos. Parabéns por escrever algo de qualidade com prazo pra conclusão. Conheço a dificuldade...

Bijunda!

Anônimo disse...

Lindo, sinto sua falta.
Beijos.
Cris

Anônimo disse...

Definitivamente: BRILHANTE!

Rapaz! Vc tem o dom! Conseguiu retratar a vida sofrida das prostitutas, com toda sensibilidade que merece. De uma infância cheia de traumas à uma idade adulta depressiva.
Um forte aplauso pra você, meu rapaz!

Dane ... disse...

Adorei... vc escreve muito!!!
E como já disseram acima "deu vontade de tomar um lexotan"...

Adoro mto...
beijo, Dane.