quarta-feira, 18 de julho de 2012

Against all odds


Daí que ontem a Phoebe fez um ano de vida. Quer dizer, ontem foi a data que a Silvia, minha noiva, e eu escolhemos para celebrar o nascimento dela. O porquê de isso merecer um post no blog, vem em seguida. Acho que vale a pena compartilhar com vocês.

A Silvia é filha única. Por questões que não vêm ao caso, ela nunca teve um cachorro. Eu, por outro lado, tive cães a minha vida toda. Sinceramente acho que uma pessoa que nunca teve um cachorro não experimentou, em nenhum momento de sua vida, um amor verdadeiramente incondicional. Mas a minha opinião não conta. Quem é mais próximo de mim sabe como eu sou alucinado por cães.

O fato é que a Silvia, ano passado, se sentiu preparada para ter seu primeiro cão. Ela queria emagrecer, e levar o animal para caminhar todos os dias ia motivá-la e ajudá-la. Era uma situação de vitória certa. Além disso, o cão seria nosso pet quando casássemos. Eu já tenho dois na casa da minha mãe, o Chico e o Thor, objetos da minha devoção. Claro que eu não poderia levá-los comigo, por que eles são companheiros da minha mãe e a curaram de uma depressão profunda. Tampouco poderia levar apenas um: eles também nunca poderiam ser separados.

Sou contra a compra de animais, acho que o mercado de cães é cruel e move uma indústria que faz mais mal do que bem. Mas isso não vem ao caso. Estou escrevendo para celebrar a vida. Disse isso apenas para justificar o porquê de eu ter dito à Silvia que ela devia adotar um cão, e não comprar um filhote de raça.

Um dia, indo em uma dessas lojas grandes para comprar coisas para o Chico e o Thor, vi que estava rolando um feirinha de adoção. Cheguei mais perto para checar os cachorros e, gente, esse foi um dia realmente marcante. O primeiro cachorro que eu vi, uma vira-latas preta, chamada Daphne, me fez chorar. Ela estava com um laço na orelha, e me olhou com os olhos pretos brilhantes como se soubesse que estava prestes a ganhar um lar. E, de fato, estava: uma senhora atrás de mim estava terminando de preencher a documentação para poder levá-la.



Na jaula ao lado da Daphne estava uma filhote muito magra e com uma barriguinha de verme gigante. Dormia como se não houvesse amanhã. Dormia como se soubesse que esse sono, em breve, se ela não fosse resgatada, seria eterno. Me apaixonei na hora. Tirei uma foto e mandei para a Silvia. Batizada de Pantera, a filhotinha era a última de uma ‘ninhada’ de quatro que chegou na feira naquela manhã de sábado. A moça da ONG me disse que não poderia segurá-la, e que filhotes normalmente saem primeiro. A Silvia não podia ir naquela hora, então decidimos arriscar encontrá-la no dia seguinte.

Quando chegamos, no domingo de manhã, ela não estava lá. Não tinha chegado ainda, mas não tinha sido adotada. Olhamos alguns outros cães que aguardavam um dono, mas a Silvia não teve aquela ‘química’ com nenhum deles. Decidimos ir embora para cumprirmos mais compromissos dominicais. No meio do caminho, ao parar em um posto de gasolina, eu senti uma coisa dentro de mim. Algo inexplicável. Olhei pra Silvia e não precisamos falar nada. Ela disse: “Vamos voltar lá, só pra olhar de novo?”. Voltamos. Como estávamos atrasados, fiquei esperando no estacionamento enquanto a Silvia foi lá ver se ela tinha chegado. Vejam: a Silvia só tinha visto uma foto dela, dormindo, de lado e com a cabeça encoberta. Mesmo assim, quando ela entrou, reconheceu a Phoebe e, imediatamente, a Phoebe subiu no carrinho de mercado em que estava e abanou o rabo. Recebi a ligação da Silvia, excitada, dizendo que a tinha encontrado. Dizem que não somos nós que escolhemos nossos animais, e sim eles que nos escolhem. E foi exatamente o que aconteceu: a Phoebe escolheu a Silvia.

Preenchemos a papelada e, mediante a doação de um pacote de ração, pudemos levar ela conosco. Ainda tínhamos compromisso a cumprir naquele dia. Precisávamos continuar procurando apartamento para morar. Então combinamos de a Phoebe ficar comigo e os outros dois cães na casa da minha mãe, e ela foi fazer essas outras coisas.

A Phoebe chegou em casa muito magra. Tossia muito e, quando tossia, soltava pedaços grandes de catarro no chão. Achei que ela estava resfriada, mas suspeitei um pouco. No dia seguinte, a levamos para uma veterinária para dar vacina, fazer consulta de rotina etc. Quando contamos para a médica como pegamos a cachorra e que ela tinha tido episódios de diarréia relatados pela tutora que esteve com ela antes de nós, veio a notícia: Phoebe estava subnutrida, cheia de vermes e com pneumonia. A pneumonia, nesse caso, era o segundo estágio de uma doença que mata 95% dos filhos que ela acomete: a Cinomose.

O diagnóstico foi bem “empírico” e a médica foi muito direta conosco: “Essa cachorra vai morrer em menos de uma semana. Se ela não morrer, voltem aqui que iniciamos um tratamento”.  Imaginem vocês, amigos, que conseguiram ler o texto até aqui, que a Silvia, que nunca tinha tido nenhum cachorro, recebeu a notícia desse jeito.

Deixamos a clínica desolados, mas com muita fé. Naquele momento, prometi pra mim mesmo que ia fazer o possível para que ela pudesse sobreviver. No dia seguinte fomos em outra médica que teve um discurso completamente diferente. Pediu exames para confirmar a doença e disse que, se fosse mesmo, teríamos chances de curá-la. Fizemos os exames. A Phoebe realmente estava com uma séria pneumonia. A Phoebe realmente tinha Cinomose. E estava desnutrida, com anemia profunda e, enfim... À espera de um milagre.
A Silvia e eu passamos a estudar toda a literatura de cinomose, ficamos experts na doença de tanto ler artigos científicos e eu, como bom neto de baiana, pesquisei alguns métodos “não-convencionais” de tratamento. Coisa de superstição mesmo. A Roberta, médica da Phoebe, receitou os remédios e começamos a tratá-la, na esperança dela sobreviver. A espera sempre foi angustiante. Afinal de contas, só teríamos certeza que ela estaria livre da doença aguda quando ela fizesse um ano. E é por isso que estou escrevendo esse texto.

A Phoebe chegou com 1,8kg. Hoje ela está beirando uns 15kg. Quando a pegamos, em outubro, ela tinha coisa de três meses, então devia ter nascido em meados de julho.Tirando os dentes, falhados e manchados, não ficou com nenhuma sequela. Ela é uma cachorra super boazinha, carinhosa e saudável, que alegra todos os lugares onde vai.

Olhando para trás, percebo o quanto ela nos ensinou. Durante esse tempo, ela foi a sublimação de perseverança e vontade de viver. Ela nos ensinou o valor de nunca desistirmos. Ela apoiou sua vida nas nossas mãos, e confiou no que o destino dela preparava. Muitas vezes acordamos de cara virada, de mal com a vida, pensando em como é difícil vencer todas nossas batalhas diárias, não é mesmo? Hoje, quando eu acordo assim, penso na Phoebe e em como ela é guerreira, em como isso pode ser um exemplo para a minha vida.

Sei que a Phoebe vai viver menos que nós. Isso é óbvio. Sei que essa doença pode voltar na velhice dela. Mas também sei que ela vai ter uma vida digna até o fim, da maneira como tem de ser.

Escrevi esse texto em homenagem a ela. Em homenagem à sua vontade de viver, de vencer. E que ela sirva de exemplo para todos que lerem esse relato: nunca desistir, mesmo 'against all odds'.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

De frente pro crime

Era madrugada de domingo. Rolei na cama, fugindo das partes empapadas de suor do lençol para tentar dormir mais um pouco, mas o calor e uma mosca que insistia em sobrevoar meus ouvidos não deixaram. Levantei, descolei meu terço do peito molhado e fui até a janela de madeira. Com certa dificuldade, abri a portinhola e o ranger das dobradiças enferrujadas prenunciou o que seria o dia. 

Na rua de paralelepípedo, de frente para o bar que fica do outro lado, estava um corpo esfaqueado. O sangue, seco, dançou entre os blocos de pedra, fazendo um labirinto vermelho na ladeira. A pele negra do defunto ganhou um tom amarelo e alguma alma bondosa cobriu a cabeça com o caderno de esportes do jornal, com a foto de um golaço marcado pelo craque da camisa 10 de um time qualquer. 

Um pequeno amontoado de gente já tinha se aproximado para curiar o cadáver. Senti naquela gente a curiosidade mórbida comum dos crimes que acontecem nessa periferia. Pouco depois, o bar já estava lotado de todo tipo de sujeito. Josés junto com traficantes. Marias junto com prostitutas. Todos curiosos para saber de quem era o presunto. No meio do murmurinho uma voz se sobressaiu, seguida de um silêncio constrangedor:

- Bem feito! Esfaqueado na rua a essa hora da manhã? Boa coisa não devia ser. Que todos esses vagabundos morram dessa maneira!

Bonifácio, que voltava da gráfica com uma tonelada de santinhos para sua campanha de vereador, subiu numa cadeira de metal na porta do bar e aproveitou o momento com eloquência:
- É isso que vocês querem pros seus filhos? É assim que vocês querem acordar numa noite qualquer, preocupados com a volta das suas crias? Alguém precisa fazer alguma coisa! Vocês precisam de um representante na câmara para lutar por mais segurança, por mais condições de vida! João, distribua alguns aí pro pessoal! Vou deixar duas caixas de cerveja pagas aqui. Não se esqueçam: na próxima eleição, votem Bonifácio!

Aquele discurso cheio de gestos inflamou a claque que ouvia com atenção. Um tanto de gente se amontoou no balcão para lutar por um copo da cerveja recém anunciada e outro tanto discutiu as palavras que tinham acabado de sair da boca do político, enquanto agitavam os santinhos contra o corpo para fazer vento. O calor abafado já tinha espalhado no ar um odor de mortandade. O sangue cheirava a açougue, com a diferença de que era mais ácido e mais forte.

Cocei a barriga e percebi um homem se aproximando com uma bancada montada, cheio de correntes, pulseiras, aneis e vidros de perfume. Ele andava por entre a multidão anunciando os produtos. Parava nas mulheres, tirava alguns exemplares das bijuterias baratas e as experimentava nos pescoços suados que, a essa altura, já tinham esquecido do morto e agora pechinchavam com o ambulante.

Um pouco pra direita, a baiana que costuma vender acarajé na porta da igreja da matriz já tinha montado a barraca e ateava fogo no carvão para fazer espetinhos. A cerveja já tinha acabado, algumas confusões já tinham se armado e acalmado e o número de pessoas aumentava com o passar do tempo. 

Ja era alta madrugada e, de súbito, ouvi os batuques do pessoal que subia o morro, voltando de um ensaio na escola de samba. A baiana teve que largar os espetinhos queimando para acudir a porta-bandeiras que caíra numa convulsão estranha. Vai ver era o calor. Vai ver tinha baixado um santo. Não sei. As crianças corriam e gritavam em volta do defunto que permanecia ali, estatelado com o jornal na cara. A polícia ou o IML não tinham dado nem sinal de vida.

Quando alguém da igreja evangélica começou a pregar a palavra de Deus com ardor e um bíblia levantada, o pessoal foi se dispersando, devagar. Domingo ia ter jogo do Flamengo e, agora, um monte de negras cheirosas passeavam pelas calçadas. Observei a movimentação mais um tempo. O bar fechou, a rua esvaziou e o corpo jazia ali, inerte, esperando alguma ação enquanto seu fedor tomava conta do ambiente.

Alguns rapazes largaram os tambores de lado para levar a passista no colo, enquanto outros ajudavam a baiana a desmontar a barraca. Fiz o sinal da cruz, por precaução, e fechei a janela. Era só mais um domingo começando.



sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Getting back to go forward

"Para continuar caminhando em frente, às vezes é preciso recuar alguns passos."

Nunca consegui aceitar muito bem esse dito popular. Na minha cabeça, o progresso é one way only e, poxa, ter que recuar quando o que se mais quer na vida é chegar a algum ponto nos deixa, no mínimo, frustrados. Ora, como é que eu vou chegar no ponto de ônibus a tempo de embarcar se antes vou ter que fazer um moonwalk, dar uma rodadinha, e depois continuar? Não faz sentido, né? Mas faz.

Me peguei pensando no processo de desenvolvimento de uma borboleta. Sem a licença poética da coisa. Veja: ela nasce livre. Uma larva que pode saracutear pelas folhas e se empamturrar com o que quiser. Sobe, desce, conversa com as irmãs e reza para um pássaro ou outro predador qualquer não escolhê-la pro jantar. A folha é a zona de conforto da nossa amiguinha. Ali ela tem tudo o que precisa para viver: comida e uma relativa proteção. É o cenário perfeito, não é?

Ok, agora tira o zoom. Existe um mundo inteirinho que rodeia essa folha segura e tentadoramente confortável. Árvores, bancos, chão. Uma imensidão! Uma vastidão desconhecida. Um sem fim de caminhos a seguir, a explorar, a descobrir. Mas, infelizmente, nossa querida larva não pode usufruir desse mundo. Afinal, sua locomoção é péssima, os perigos são enormes e os caminhos muito, muito compridos.

Até aí, tudo bem. A vida de todo e qualquer ser vivo tem suas limitações. Pode ser que esse mundão todo realmente não seja feita para a larvinha. Daí que, de repente, ela vê uma linda borboleta azul, brilhante e imponente, rasgar um casulo e voar por toda essa imensidão. 

Opa! Peraí! Como ela conseguiu?

Subitamente, a larva percebe que aquela imensidão toda não é, necessariamente, uma coisa impossível de se alcançar. Com as ações certas e as ferramentas adequadas, ela pode, sim, ganhar tudo aquilo que está em volta da sua leaf-town. E aí a coisa fica complicada. A larva gosta de ser livre. A larva gosta de andar pelas folhas com suas irmãs e comer muito, até rolar. A larva gosta daquela emoção de não saber quando vai ser seu dia de azar, quando pode virar comida de pássaro. Mas, para ganhar suas asas coloridas e 'voar pelos caminhos mais bonitos', ela vai precisar abdicar disso. É um sacrifício necessário para a liberdade. Liberdade? Se isso é a liberdade o que a larva vive nesse momento. Ué. Não é, também, a liberdade? Não. Não mais. Saber que existe o desconhecido e que ele é perfeitamente alcançável tirou o status de liberdade da vida da larvinha. A folha, antes confortável e plena dos recursos necessários para uma vida feliz, tornou-se agente limitador, um pedaço de chão verde e pronto. E as irmãs nem são tão legais assim. Elas já não são interessantes o suficiente para justificar a estadia dela. 

Então a larva decide retroceder. Decide se aprisionar. Abdicar de tudo o que sua vida de gordinha fanfarrona gozou até agora. E isso é um retrocesso porque, sabemos, ela já esteve presa em um ovinho antes de nascer. Sabe Deus as transformações que acontecem dentro daquele casulo. Mas aquele momento de isolamento total faz com que a larva cresça de tal maneira que ela desenvolve antenas para sentir melhor o mundo. Ganha pernas para ser mais ágil e permanecer em lugares irregulares e, principalmente, ganhas asas. Lindas e coloridas asas que podem levá-la a lugares nunca antes vistos. Sua aparência mais ostensiva faz o pássaro e todos os outros predadores perderem o apetite. E seu único medo, agora, é que sua vida efêmera não a permita conhecer toda aquela vastidão que agora se abre na sua frente. Ela só não sabe que esse mundo novo oferece novos perigos, novos predadores e faz parte, se a gente tirar ainda mais o zoom, de um universo mais vasto, maravilhoso e inexplorado ainda!

Mas isso não importa por enquanto. A larva viveu feliz por um tempo. Deu-se conta de que tinha mais coisa lá fora. Teve a coragem de retroceder e sair da sua zona de conforto. Se sacrificou para ir em frente e, convenhamos, isso é um belo exemplo de que para seguir em frente, às vezes é realmente necessário dar uns passos pra trás.

Vai saber se o moonwalk e a rodadinha que eu vou precisar completar não me façam perder este ônibus, mas me permita chegar a tempo de pegar o próximo, mais vazio e com ar condicionado?

Pode ser que o leitor esteja pensando que essas linhas aí de cima são muito genéricas e bobas.

Mas uma das poucas certezas que eu tenho nessa vida é de que nós, seres humanos, estivemos presos antes de nascer, vivemos em uma zona de conforto, fugimos de predadores diversos, descobrimos um mundo cada vez mais vasto e nem sempre alcançável. 

Ora, já vi essas história antes!

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Incofessáveis desejos

 Às vezes, depois de terminar minhas obrigações, gosto de sentar do lado de fora deste café e observar a rua movimentada do centro da cidade. Apesar da estranheza do olhar daqueles poucos que me notam, passo desapercebida, tomando um capuccino lentamente.

Do outro lado da rua tem um açougue. Uma 'butique de cortes especiais', segundo as inscrições no toldo. Dentro dela trabalha um homem alto, muito forte e mal humorado. Depois da vitrine com peças penduradas, atrás do balcão de aço, pode-se notar o brutamontes manejar habilmente uma ferramenta. Ele fica a maior parte do tempo ali, naquela mecanica repetitiva e estranhamente sensual. Quase posso sentir a vibração da tábua e o barulho do cutelo separando ossos da carne. Um festival sangrento. Uma sinfonia de morte. Um espetáculo mórbido, cujo maestro exala suor e virilidade. Virilidade: significante do músculo do braço retesado, duro, produzindo o baque que me deixa hipnotizada.

Ao lado do açougue tem um escritório de advocacia. O dono é um homem franzino, de óculos redondos, pequenos e andar apressado. Não passa dos quarenta, apesar de a têmpora denunciar a chegada da calvície. Além do terno, anda com uma pasta de couro e sapatos pretos brilhantes, perfeitamente engraxados, impecáveis. Parece ser um homem extremamente metódico e organizado. Sua gravata está sempre apertada, o cabelo – apesar de pouco – sempre penteado e a roupa impecavelmente esticada. Assim que passa pelo açougue, escolhe as partes pintadas de preto do piso geométrico em frente ao escritório, como uma mania, um dogma, uma ordem a ser seguida obrigatoriamente antes de abrir a porta. Ordem: confluência e previsibilidade atordoantes e excitantes.

Na verdade, gosto de observar os homens em geral. Presto atenção no porte físico, no andar, na rusticidade de seus movimentos, na essência de sua natureza animal. Logo, perdida nos pensamentos, sinto as pernas formigarem, um frio subir pela espinha e a umidade atingir minhas roupas íntimas inundando e aquecendo o sexo por baixo da roupa. Minha mente voa, cria situações das mais diversas e me permitem ter um momento de luxúria, de prazer mundano.

Me imagino sendo possuída de forma abrupta. A roupa tirada com pressa, a calcinha rasgada, a lascívia do beijo e a respiração ofegante. Sinto mãos rústicas apertando minha cintura e meu quadril, meus seios pressionados contra um peito volumoso, sem a mínima chance de escapar. Gosto de pensar na possibilidade da vontade incontrolável ser o elemento principal da pressa em consumar o sexo. Um sexo intenso e, por que não dizer, violento. Daria tudo para sentir uma mão percorrer meu corpo, enlaçar meus pescoço, rodear as auréolas dos meus seios. Daria tudo pra sentir dedos ásperos apertarem minha coxa, minhas nádegas, com uma força quase insuportável. Gosto de me imaginar sendo possuída em um desses becos ermos do centro da cidade, sendo colocada abruptamente de frente para a parede, tendo a saia levantada e a calcinha colocada de lado, para receber um membro grosso e quente como brasa em uma única forte e viril estocada. O sexo urgente, que não pode esperar um lugar reservado. Precisa ser feito ali, naquele lugar, com o desejo queimando qualquer juizo.

E à noite, no escuro de uma cama, sem poder ver nada, sentir desconhecidos disputarem um espaço na minha pele, braços fortes de açougueiros e mãos gentis de advogados, todos juntos, tentando me possuir, lutando por meu corpo como animais sedentos. Poder tocar, poder sentir seus membros pulsantes com as mãos, sugá-los com avidez e depois ser invadida, sem ordem, por todos eles. Ter orgamos indefinidamente contínuos, ser usada como um objeto e depois, largada no leito, percorrer a mão pelo lençol molhado de suor e sêmen.

Então percebo que já se passou muito tempo, estou mordendo o lábio e segurando a parte interna da coxa com força. A tarde vai caindo e eu preciso voltar, trancar o portão principal do convento, me banhar com água fria e trocar de hábito para a última liturgia do dia.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

O articulista

"(...) Enfim, é preciso se doar, passar por cima do orgulho e, acima de tudo, procurar o diálogo para conferir sucesso a uma relação. O amor não atende regras. Ele simplesmente acontece, de maneira personalizada, e depende de nós adotarmos uma postura que assegure seu sucesso. Em outras palavras, amar é se dedicar ao ponto de abdicar da própria individualidade, não pelo outro, mas pela união em si. 

Não adianta esperar que as coisas se resolvam por elas mesmas. Tente, consiga! Leve sua relação para outro nível. Invente, inove, evite a rotina, seja criativo! Está dentro de você o segredo para a felicidade!"

Depois de ler cuidadosamente cada palavra do artigo que escrevera, anexou o documento no e-mail e mandou para o editor do jornal. Fez umas pesquisas na internet, tentou achar um restaurante de comida japonesa perto de casa e desistiu em seguida. Não estava com fome e, bem, com sorte, teria tempo pra comer no final da noite e provavelmente a maioria dos restaurantes decentes estariam fechados.

Além do mais, comida japonesa estava no cardápio da terça-feira durante todo o tempo que permanecera casado. Invariavelmente, incondicionalmente, terça-feira era dia de comida japonesa. E pronto. O simples pensamento de mudar a rotina o apavorava.

Escrevia para o maior jornal da cidade. Sua famosa coluna saía no caderno de comportamento todas as quartas-feiras e, às sextas, escrevia textos motivacionais e altamente reflexivos em seu blog. Tinha uma legião de leitores fanáticos, que replicavam seus textos na grande rede como se aquilo fosse o santo graal, a chave da plenitude, a resolução de todo e qualquer problema. Isso porque escrevia simplesmente o que as pessoas queriam ler. Soube, em dado momento da vida, que o mundo moderno deixa as pessoas inseguras, confusas, altamente carentes e com auto-estima dilacerada. Colocava uma carga filantrópica no texto, como se detivesse a fórmula de se levar uma vida feliz e plena.

Recolheu a chave do carro, passou a mão na jaqueta pendurada na cadeira e atravessou a redação se despedindo dos colegas, que o cumprimentavam com um olhar admirador e até indulgente, principalmente as mulheres. Ah, as mulheres! Aquelas coisas teoricamente complicadas que precisam de auto-afirmação e de um modo-de-fazer para tudo na vida. Escrevia para as repórteres loiras e gostosas que transitavam nas casas políticas, hipnotizando vereadores e deputados com seus decotes discretos, donas de um poder absoluto mas miseravelmente infelizes por engatar romances com 'porcos machistas' e 'canalhas cretinos'. Mas nunca se esquecia das feinhas donas de consciência avançada que liam jornais, navegavam nas redes sociais e frequentavam os picos da high society, esperando encontrar o príncipe encantado, mister universo cheio de atributos intelectuais quando, convenhamos, iam conseguir, no máximo, um nerd honesto e disposto. Criava um discurso genérico e altamente óbvio, mas fazia seus leitores acreditarem que nunca tinham se deparado com aquelas reflexões. "Como é que eu não pensei nisso antes?". Seu dever era colocar essa pergunta na cabeça das pessoas.

Antes de arrancar com o carro, ligou o rádio e pegou a música que marcou o maior romance de sua vida pela metade. Esperou ela terminar, ligou o iPod e seguiu em frente. Sem cinto. Sem olhar nos retrovisores. Sem se importar. Abriu uma goma de mascar, jogou a embalagem pela janela e parou o carro na faixa de pedestres para esperar o semáforo abrir.

Quando entrou em casa, topou com um ambiente vazio, quase estéril. Suas malas estavam sistematicamente arrumadas em frente ao sofá de três lugares. O restante das coisas já tinha sido levado pela ex-mulher, exceto o porta-retratos da família em cima de uma estante: pai, mãe e os dois filhos sorrindo com uma felicidade genuína em um domingo ensolarado no parque. Pegou a moldura, olhou para ela por alguns segundos e se lembrou da vida perfeita que teve. Fatalmente, claro, lembrou do que causou seu fim. Numa quarta-feira em que publicou um texto comparando lealdade e fidelidade e sua aplicação no dia-a-dia das megalópoles, foi flagrado pela ex-mulher com sua melhor amiga, na sua própria cama. "Fidelidade não tem que ser esforço. Tem que ser genuína. Quem ama não precisa trair. Não há em nenhum momento essa necessidade", dizia o texto. E lá estava ele. Na cama da esposa, com a melhor amiga da esposa, praticando aquilo que condenara um dia antes, no texto que escreveu alternando com SMS para a proto-amante, falando sacanagens leves e prometendo um bom vinho e uma boa 'comida'.

Colocou o que pode no carro e dirigiu até o apart hotel onde estava temporariamente instalado. Recebeu até alguns convites para dividir um apê, mas sua alma egoísta não permitia que estranhos ocupassem o mesmo local que ele. Descarregou algumas caixas, acamodou-as com displicência na entrada e saiu de novo. Parou em uma lanchonete, pediu um combo com batata e refrigerante grandes, comeu ali mesmo no carro e seguiu para um bar, onde sentou e bebeu o resto da noite. Estava um caco. Bêbado, sem mulher, miserável, odiado pelos filhos e esquecido pelos amigos.

Vomitou no banheiro, pagou a conta e foi pra casa. Precisava começar a preparar o texto que falava sobre alimentação saudável, evitar bebidas alcóolicas e praticar exercícios físicos que ia circular por milhares e milhares de perfis na sexta-feira.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Dissonante

Sonhei com uma descoberta
Que pode ser a chave para a liberdade.
Preciso manter a mente aberta;
Espalhar por aí toda a verdade.

Acho que sempre tive a consciência,
Mas esqueço de praticá-la.
Seria ultraje, indecência
Me recusar a seguir essa escala.

Fecho as mãos e finalmente percebo
A força que sempre tive:
Seguir minhas ideias, superar o medo;
Lutar e finalmente ser livre.

Sou a voz na escuridão!
O som perdido, esquecido.
Reverberando nos ouvidos da multidão,
Submisso, oprimido, repartido

Sou o grito, o escândalo!
Guardado em uma caixa selada.
Guerrilheiro, heroi ou vândalo;
Aprisionado em uma realidade inventada.

Tenho em mim a força da mudança
Necessária para a revolução!
De repente acordo, na esperança
De voar e dominar a imensidão!

Mas no abrir da pálpebra cansada,
Antes mesmo da lua se retirar,
Me esqueço da empreitada.
São cinco e meia, é hora de ir trabalhar...

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A deslocada

Poucos momentos da nossa vida nos dão a verdadeira certeza de que não pertencemos a qualquer lugar em que estejamos. Esta é uma história triste, devo alertar. Daquelas que deixam a gente pensando por horas. A nossa personagem principal - sim, é uma "ela" - pode dar um grande aperto no seu coração.

Antes de mais nada, vamos a ela. 

Ela é feia. 

Não. 

Ela não é feia. Só não atende os requisitos dos padrões criados pelo mundo contemporâneo, digamos. Redonda em cima, com parte do corpo torta, inapropriadamente torta. É a versão feminina do bonitão da turma, mas nesse caso é ela quem carrega um apêndice. Um incômodo apêndice. Um apêndice, talvez, determinante para sua condição de excluída. Vai saber?! Também não é esguia e charmosamente inclinada, como algumas de suas amigas. Nem tem o cabelo espetado, estiloso, como aquele punk descolado que, muitas vezes, é usado como trunfo.

Espera! Estou sendo injusto. Em alguns momentos da História, desde sua criação, ela foi essencial. Determinante. Passeava por aí como uma rainha, importante, bonita e atribuidora de estilo. Quem a escolhesse cuidadosamente, gozava de um sucesso tremendo e agradava todos aqueles que, por algum motivo, admirava o trabalho feito. Nessa época, a maioria da turma tinha peso e importância iguais. Ela não valia menos que os bonitões e, se quer saber, era mais usada que as magricelas tortas. Todos as cobiçavam e tinha até quem torcia para ser escolhido no mesmo período. Os bonitões, todos, rezavam para serem usados por cima dela. Era sua época áurea. Uma época em que as coisas aconteciam por causa dela e não apesar dela. Ela dividia períodos, ideias, canções. Colocava cada coisa em seu lugar com um cuidado e maestria impressionantes. Era ela quem mandava no pedaço.

Acontece que o mundo muda. E com o mundo, mudam muitas outras coisas. Conceitos, parâmetros, valores e preferências. E, foi durante uma dessas mudanças que ela perdeu o reinado. O trono sempre foi e sempre será dela por direito, não tenha dúvidas! Mas as coisas começaram a se simplificar, encurtar. Sua aparência voluptuosa não tinha mais charme. A compressão atingiu todos os níveis da produção em geral e, naturalmente, as magrinhas começaram a ganhar mais espaço. Ninguém gosta de assumir, mas na verdade, a turma toda entrou em decadência. Porque aqueles que os utilizavam frequentemente descobriram outros modos de comunicação e daí, meu amigo, não importa mais se você é "ele", "ela", tem apêndice, é punk descolado ou anda por aí em turma. Todo mundo caiu no mesmo buraco. E, como qualquer coletividade que entra em decadência, aqueles que são visualmente mais agradáveis são mais aclamados. Simples assim!

O advento da internet foi quase como sua sentença de morte. O bonitão e a magricela torta se tornaram os responsáveis por levar os utilizadores aonde eles quisessem. Ela se tornou um estorvo, por exemplo, em um lugar que só permitia 140 caracteres. Todos eles se tornaram. Mas ela, em termos de importância, estava muito longe do bonitão, das magricelas e até mesmo do punk descolado.

Hoje, apenas alguns dos utilizadores continuam dando a ela sua importância régia. Mas os lugares onde ela aparece são pouco visitados. Ou ela é simplesmente ignorada. Tornou-se, coitada, sem querer, um fenômeno behaviorista. Tornou-se, ela mesma, parte da psicologia moderna. Sim, apesar de ser lembrada por esses utlizadores cuidadosos, some às vistas dos que a ignoram normalmente. Afinal de contas, à parte a síndrome de Édipo, Elektra e as teorias sexuais Freudianas, a psicanálise já provou que nem sequer chegamos a registrar coisas que nossa mente ignora no dia-a-dia.

Minha amiga, a vírgula, ganhou uma homenagem. Espero que ela fique feliz. Fiz isso porque acho que ela está prestes a se matar. A varrer a própria existência das línguas do planeta. Fiz porque tenho um grande apreço por ela e não quero, de maneira nenhuma, que ela logre sucesso nesse comportamento suicida. Fiz porque, talvez, alguém leia essa homenagem e decida começar a utilizá-la, também.

A vírgula, minha amiga, não é qualquer uma. Mas a vírgula, coitada, está em baixa. Foi trocada por sinais mais atraentes. E, sabe, eu até gosto desse jeito gordinho e desajeitado que ela tem!